terça-feira, 23 de setembro de 2014

Nossas dores

Rua Retiro, Bairro Tatuapé – SP. Sexta-feira, 19 de setembro de 2014, 16:20h.
Entro no táxi, aos prantos.
O taxista, um senhor moreno, de barba- deve ter sido um moço muito bonito - me diz:
Que horas é o seu voo, Dona Larissa?
Digo:
__ Às 19:40h. Mas é sexta-feira. E essa garoa, essa chuva que começa... Achei melhor não arriscar e preferi ir mais cedo para o aeroporto.
E ele:
__ Fez bem, fez bem!
Mas eu não sou Larissa, sou Neusa. A Larissa é quem chamou o táxi. É minha filha, que estou deixando!
__ E eu chamando a senhora de Larissa! É Neusa, né?
E me surpreende:
__ Olha, a senhora pode chorar, viu. Vá chorando tranquila. Nós vamos devagar, vamos no contra fluxo. Vamos chegar bem.  Pode chorar em paz, sossegada.
E eu, como boa chorona, chorei.
A viagem não foi tão rápida assim como ele previu. Pegamos engarrafamento, trânsito pesado, pelo menos em dois trechos. Cheguei em Congonhas já eram 18:20h. Em São Paulo, é assim: melhor não arriscar.
No caminho, o taxista silenciou por um tempo. Os sons que ouvíamos eram das chamadas da empresa, era ele informando que tinha pego a corrida do Tatuapé, eram outras conversas de outros taxistas etc.
Depois, começou a falar:
__ Eu entendo a senhora. Tá ferida, né?
Confirmei com a cabeça e chorei mais.
__ Também estou ferido. Perdi minha mulher fez um ano agora. Íamos comemorar trinta anos de casados. Não deu tempo.
Ela teve uns miomas, a senhora sabe. Fez quimioterapia. Ficou boa. Cursou outra faculdade. Era estudiosa.
Mas um dia, começou com uma tosse, tomou xarope. Não passava. Era a doença. De volta.
E eu ouvindo, e chorando, já sem saber mais se chorava por mim, pela Lalá, por ele ou por todas as dores do mundo.
E ele continuou:
A senhora sabe que não dormi mais na minha cama. Não consegui. Falei pro meu filho, que é casado:
__ Vocês ocupem o quarto. Troquem a cama e fiquem aí. Fui prum quartinho que tenho lá nos fundos. É pequenininho, mas me cabe.
Contou dos netinhos: dois – um filho do filho e uma filha da filha. Contei da minha netinha também. Falei da imensa saudade.
Nos engarrafamentos, ele pegava o celular e me dava pra eu ver fotos e vídeos. Vi a netinha, toda encapuzada, parecendo a Chapeuzinho Vermelho, tentando dar passinhos apoiada no sofá. Vi o netinho, os filhos, a mulher tão amada.
E ele continuou:
__ Meu namoro foi difícil. Meu sogro disse que não ia entrar negro na família.
Tentou me matar. Foi preso. Na delegacia, ele, o delegado e eu, mas não houve conversa. Repetiu que não queria negro na família. Continuou preso. 
Naquele tempo, não tinha essas leis de agora. Quando foi solto, vieram me avisar que tivesse cuidado. Eu andava atento o tempo todo. Tinha medo.
Mas não teve jeito. Era amor.
Quando ela completou 18 anos, casaram-se. O velho mandou que sumissem.
Mas vieram os netos. A menina, com a cor do avô. O menino, com a cor da avó. E o velho foi se chegando.
Falava sem mágoa. É passado.  Na voz, a sabedoria que o tempo nos dá.
E repetiu, inúmeras vezes. Entre uma frase e outra:
__ Ainda estou ferido.
Eu também. Ainda estou ferida. Mas diante de uma perda como a dele, preciso relativizar minha dor. Vou rever minha loirinha em breve. E ele?