quarta-feira, 31 de maio de 2017

A velha do cachorro

     Nosso cachorro foge de casa. Por isso, toda entrada e toda saída é uma operação de guerra: abre-se uma porta, fecha-se,  mantendo-o na sala anterior e só então abre-se a que dá para a rua.
     Quem nos visita sabe. Não raro, um desavisado abre a segunda porta sem ter fechado a primeira e lá vai ele em busca da deliciosa felicidade chamada liberdade.
     Ou também quando há um prestador de serviço - um pedreiro ou um pintor.  A cena se repete até que ele internalize o procedimento.  Acho que a informação que mais dou aos que chegam pela primeira vez é : Ele foge!
     Nessas situações de fuga, acontece o inevitável. Se há mais alguém em casa, peço que o busque, mas, se estou sozinha, saio correndo atrás dele.
     O pior: sabe aquelas roupas que temos pra ficar em casa? Confortáveis, mas inadequadas para a vida social? Pois é. É com elas invariavelmente que desço pela minha rua gritando: Goya! Goya!
      Nessas horas, imagino o ridículo da cena, peço a Deus que as casas todas estejam sem os seus moradores. Mas me submeto.
     Eu amo o Goya. Não queria. Relutei muito. Mas amo. É um espertalhão, é  certo. Se aproveita da minha incompetência e faz comigo o que não faz com os outros moradores. Rasga as barras dos meus vestidos ou a as mangas das minhas camisetas pulando, pedindo algo.
     Pela manhã, fica no pé da escada até que eu saia do quarto e verifique a água, a ração e lhe dê dois bifinhos.  Antes era um só. Mas ele reclamava e me dizia nos latidos que a quantidade não era suficiente. Já aprendi que nunca é. Se deixar,  come todos que eu der.       Pelo menos essa lição eu aprendi.
     Imagino como fica quando não estou em casa. Me corta o coração. Ele também me protege. Se alguém que ainda é estranho a ele se aproxima de mim, ele avança.
     O fato é que, depois do Goya, me apaixonei. Se vou a um pet shop e vejo cãezinhos à venda ou se os vejo pela rua necessitados de banho, comida e afeto, fico tentada a levá-los.         Meu medo é eu começar a lotar minha casa de cachorros. Costumo dizer que fui traída, porque ninguém me alertou sobre as emoções que envolvem essas relações. E que se eu tivesse assistido ao filme "Marley e eu" antes da decisão,  eu jamais teria deixado ele vir.
      Minha relação com  animais foi tardia. Quando minha filha insistiu que queria um, demorei a concordar. Avisei que não cuidaria dele. Que a responsabilidade pela alimentação e pela higiene seriam dela.
     Foi.
     Só na primeira semana.
     E me vi tendo que cuidar de um cão sem nenhum saber prévio. Assim,  tratei-o como a uma criança recém-nascida, quando chegou: uma bolinha peluda, linda, que cabia numa só mão.
    Disseram que ele era uma mistura de Maltês com Poddle. Por isso o nome Goya, em referência ao pintor. Nada! É um Vira- lata. Foi só pra valorizar o passe.
    Agora estou na casa da minha filha. Num bairro em que há muitos cães.  E eu os vejo sempre. Como não temos carro aqui, as idas ao supermercado são  mais frequentes porque trazemos os mantimentos aos poucos.
     Ontem, na volta, vinha na direção contrária,  uma senhorinha com seu cão. Enorme,  pêlos compridos. Não sei a raça. Nunca sei. A não ser que sejam bem distintos, como um Pit Bull, por exemplo.
     Eles conversavam.  Ou ELA conversava com ele?
O diálogo (ou monólogo? ):
Não se pode combater violência com mais violência e acreditar que esta seria uma solução. 
__ Foi o queijo que você comeu ontem. Eu falo pra você não comer. Você sabe que não pode! Mas você é teimoso. É isso que dá!
      A velha do cachorro!
    Meu Deus! Tanta luta! Tanto estudo! E vou me tornar aquela senhorinha,  a velha do cachorro! Ou dos cachorros! Apontada na rua pelos vizinhos: a velha do cachorro! Jesus!
     Não sei se conseguirei evitar esse fim, mas, na dúvida, já estou tomando uma providência: vou melhorar a qualidade das roupas que uso quando estou em casa.
     Se o Goya fugir de novo...

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Sapatilha Vermelha

     Vivi uma cena recentemente que me fez me lembrar dos meus filhos na entrada da  adolescência: aquela fase da vida em que não são mais crianças, mas também ainda não são adultos.
     Lembro-me especialmente da minha filha me pedindo presente no dia das crianças, e eu lhe dizendo que ela não era mais criança. Querendo sair à noite e ouvindo como resposta que não tinha idade suficiente para tal, ou seja, que ainda era criança. Ou quando eu solicitava ajuda em alguma tarefa doméstica e ela retrucava dizendo que ainda era criança, para escapar. Mas já queria roupas da moda. E usava batom.
     Há alguns anos, ganhei da própria, no dia das mães, uma sapatilha Via Uno vermelha. Linda. Clássica.
     Sabe aqueles sapatos que a gente usa todo o tempo, em, praticamente, todas as ocasiões e lamenta seu desgaste, inclusive adiando o fim da sua vida útil?  Pois é. Foi o caso.
     Quando é com relação a roupas, costumamos usar a expressão "bate-cuara". Do varal pro corpo e do corpo pro varal.
     Passaram - se alguns anos e eu já vinha sentindo uma vontade de reeditar minha parceria com a sapatilha vermelha. Até procurava ver se vislumbrava uma nas vitrinas das lojas, mas até então, não tinha, de fato, tentado efetivar a compra.
     Assim, buscando realizar meu desejo, na semana passada, fui a uma loja no Shopping.       Disse à vendedora:
__ Olha, eu quero uma sapatilha vermelha, sem detalhes, clássica, com um saltinho baixo.     Pode ser da Usaflex ou Ramarim Confort. Também pode ser Beira Rio, Picadilly, ou qualquer outra marca que tenha linha conforto.  Hoje em dia muitas têm, né?
     Na medida em que eu falava, a moça ia movendo a cabeça de um lado para o outro e, antes que ela abrisse a boca, já tinha me informado, com seu gestual, que o que eu queria ela não tinha na loja.
     Mesmo assim, me informou com palavras, em seguida, para que não restassem dúvidas:
__ Olha,  o que a senhora quer nós não temos.  Mesmo assim,  vou lá em cima  (no depósito) e trago tudo o que eu achar.
     Aproveitei a espera para andar pela loja. No setor do conforto até achei uma sapatilha vermelha,  mas com uma imensa fivela dourada na parte da frente e com um laço tão vermelho quanto a própria. Cafona. Quero conforto,  mas também beleza.
     Passados alguns minutos eu a vejo descer a escada com apenas duas caixas na mão.     Vocês bem sabem que, nessa situação, o vendedor vem com tantas caixas que parece um equilibrista com o rosto escondido atrás da pilha.
     E me mostrou duas sapatilhas que em nada atendiam as minhas especificações.
     E disse:
__ Olha, o que a senhora quer não existe. Geralmente as marcas que fazem a linha conforto, fazem bege, cinza ou preta. Quase que eu a interrompi pra acrescentar: E com fivelas horrorosas! Mas me calei e continuei ouvindo: A senhora quer vermelha!?!? E fez um gesto elevando os braços e as sobrancelhas como quem diz: A senhora é ponto fora da curva! Quer conforto, mas quer também elegância, beleza e em vermelho,  cor da alegria,  da paixão e da juventude???
     Só aí me dei conta daquilo que, para a vendedora, soou como contraditório.
   Em outras palavras, estou na interface,  no entremeio,  na terceira margem, no meio da ponte que separa a idade madura, digamos assim, da velhice. Sem definição, tal como as minhas crianças na entrada da adolescência. Não sou mais nova, é verdade, mas não sinto que sou velha! Diria a vendedora: Ou a senhora trata de se resignar à passagem do tempo e vai na beginha ou banca um sapato vermelho, com salto mais alto e com dor nas pernas!     Conforto zero!
     O que eu quero não existe. O mercado não se deu conta da mulher que sou. E deve haver muitas como eu. Que ainda querem o vermelho das sobrancelhas levantadas da vendedora, mas que também jà querem e já precisam de conforto - as pernas agradecem.
     A,i meu Deus!  Saí de lá dando umas risadinhas. Sou uma contradição.
     Mas vou continuar atrás da clássica, elegante e confortável sapatilha vermelha.
   Olho o passado e vejo que foi sempre assim:  eu na contramão, eu contrariando as previsões, eu querendo ir mais além do que estava posto pra mim.
     Está tudo bem. Está tudo certo.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

(014) 3522-7404



"... Segura teu filho no colo. Sorria e abrace seus pais enquanto estão aqui. Que a vida é trem bala, parceiro, e a gente é só passageiro prestes a partir." (Ana Vilela)

Esse é o número de telefone da casa da minha mãe. Ainda está na minha agenda. É um número que não existe mais. Não adianta tocar. Ninguém vai atender. Contra toda a lógica e a coerência, ele continua na minha agenda. Talvez porque sabê-lo anotado lá me aquiete a alma. Um caminho que encontrei, após o seu falecimento, foi substituir as ligações dos domingos. Às vezes, ligo para o meu irmão e para a minha cunhada: Filadelfo e Neide. É dos poucos números que sei de cor.
Minha mãe não foi uma mulher fácil.  Ou melhor,  minha mãe foi a mulher que ela pôde ser, considerando-se o tempo e as condições em que ela viveu. Quando ponho na mesa todas as limitações emocionais, econômicas e relacionais, posso garantir que ela foi uma grande mulher.
Apesar de ter me prometido que eu não seria igual a ela, me pego, no dia a dia, repetindo suas histórias, seus provérbios, seu humor - ela gostava de umas piadas ingênuas e picantes, o que parece contraditório,  mas não era. Mais que isso, me pego repetindo suas ações e o seu gestual. 
Pariu quinze filhos. 
Dentre as dores que carrego comigo estão, com certeza, cenas em que ela explicitava sua preferência por algum filho - e não era eu. 
Uma vez, estávamos na sala da casa dela e ela se levantou dizendo que ia fazer um café. Vibrei porque adoro café e café de mãe então... Mas ela, sem traquejo nenhum, me falou que ia fazer porque um dos filhos chegaria e ele adorava café fresquinho. Bem, peguei a rebarba. Fui de carona e tomei o café valorizando-o do mesmo modo: café fresquinho de mãe coado em coador de pano. 
Seria possível amar 15 pessoas diferentes da mesma maneira? As mães dão aos filhos aquilo que elas acreditam que é o melhor para cada um. Assim, aqueles que lhes parecem mais frágeis e mais carentes recebem dose extra da sua atenção e do seu amor. 
Acho que ela sempre soube que sou feita de rocha. Que me levanto sempre. Que sou fênix e que, por isso, renasço e me reconstruo, quaisquer que sejam os tropeços. Ela sabia que eu sobreviveria.
Lembro-me também da última vez em que estivemos juntas, eu pedi que ela cozinhasse uma galinha caipira do jeito que só ela sabia fazer. Ela, já muito cansada, desconversou, contou da dificuldade de se encontrar uma galinha caipira, caipira mesmo, e voltei para Porto Velho sem satisfazer meu desejo. Tentei, ao longo da vida, e ainda tento imitá-la, mas em vão. Mesmo com mais e outros temperos, meu cozido naufraga. Não é igual. Nunca será igual. 
Uma das melhores lembranças é  quando eu ligava para ela contando que iria fazer uma prova ou participar de algum processo seletivo para estudo ou trabalho e pedia que ela rezasse por mim. Ela me dizia, sempre: Ah! Minha filha, você quer que eu reze, eu rezo.  Mas não precisa, você vai passar! Queria eu acreditar tanto em mim como minha mãe acreditava. E, de fato, eu ia passando, o que só reforçava o seu engano e garantia a repetição da fala, na próxima vez: Você vai passar, minha filha! É isso: ela achava que eu era inteligente e eu gostava disso e nunca a desmenti. Omissões a serem perdoadas.
Também vejo em mim um pouco da sua dureza, principalmente nas relações,  na incapacidade do perdão. Suas dificuldades com o meu pai, ela as transformou todas em lamentos e nos fez sentir por ele o que ela mesma sentia. Demorei muito para compreender que os meus sentimentos em relação ao meu pai não eram, de fato, meus. Tarde demais. 
A meditação e a oração são as possibilidades nas quais busco hoje essa compreensão. Também é na religiosidade que tenho ancorado uma esperança de reencontrá-la, de reencontrá-los a ambos, minha mãe e meu pai. Sonho com o dia da minha passagem como um dia de reencontro. Tenho esperança de ser digna dessa dádiva. De ser merecedora desse presente: abraçá-los e dizer apenas palavras de amor, de perdão e de autoperdão. E enfim, saber e sentir que está tudo certo. Que tudo está no seu devido lugar.