"... Segura teu filho no colo. Sorria
e abrace seus pais enquanto estão aqui. Que a vida é trem bala, parceiro, e a
gente é só passageiro prestes a partir." (Ana Vilela)
Esse
é o número de telefone da casa da minha mãe. Ainda está na minha agenda. É um
número que não existe mais. Não adianta tocar. Ninguém vai atender. Contra toda
a lógica e a coerência, ele continua na minha agenda. Talvez porque sabê-lo
anotado lá me aquiete a alma. Um caminho que encontrei, após o seu falecimento,
foi substituir as ligações dos domingos. Às vezes, ligo para o meu irmão e para
a minha cunhada: Filadelfo e Neide. É dos poucos números que sei de cor.
Minha
mãe não foi uma mulher fácil. Ou
melhor, minha mãe foi a mulher que ela
pôde ser, considerando-se o tempo e as condições em que ela viveu. Quando
ponho na mesa todas as limitações emocionais, econômicas e relacionais, posso
garantir que ela foi uma grande mulher.
Apesar
de ter me prometido que eu não seria igual a ela, me pego, no dia a dia,
repetindo suas histórias, seus provérbios, seu humor - ela gostava de umas
piadas ingênuas e picantes, o que parece contraditório, mas não era. Mais que isso, me pego repetindo
suas ações e o seu gestual.
Pariu quinze filhos.
Dentre as dores que carrego
comigo estão, com certeza, cenas em que ela explicitava sua preferência por
algum filho - e não era eu.
Uma vez, estávamos na sala da casa dela e ela se
levantou dizendo que ia fazer um café. Vibrei porque adoro café e café de mãe
então... Mas ela, sem traquejo nenhum, me falou que ia fazer porque um dos
filhos chegaria e ele adorava café fresquinho. Bem, peguei a rebarba. Fui de
carona e tomei o café valorizando-o do mesmo modo: café fresquinho de mãe coado
em coador de pano.
Seria possível amar 15 pessoas diferentes da mesma maneira?
As mães dão aos filhos aquilo que elas acreditam que é o melhor para cada um.
Assim, aqueles que lhes parecem mais frágeis e mais carentes recebem dose extra
da sua atenção e do seu amor.
Acho que ela sempre soube que sou feita de rocha.
Que me levanto sempre. Que sou fênix e que, por isso, renasço e me reconstruo,
quaisquer que sejam os tropeços. Ela sabia que eu sobreviveria.
Lembro-me
também da última vez em que estivemos juntas, eu pedi que ela cozinhasse uma
galinha caipira do jeito que só ela sabia fazer. Ela, já muito cansada,
desconversou, contou da dificuldade de se encontrar uma galinha caipira, caipira
mesmo, e voltei para Porto Velho sem satisfazer meu desejo. Tentei, ao longo da
vida, e ainda tento imitá-la, mas em vão. Mesmo com mais e outros temperos, meu
cozido naufraga. Não é igual. Nunca será igual.
Uma das melhores lembranças
é quando eu ligava para ela contando que
iria fazer uma prova ou participar de algum processo seletivo para estudo ou
trabalho e pedia que ela rezasse por mim. Ela me dizia, sempre: Ah! Minha
filha, você quer que eu reze, eu rezo.
Mas não precisa, você vai passar! Queria eu acreditar tanto em mim como
minha mãe acreditava. E, de fato, eu ia passando, o que só reforçava o seu
engano e garantia a repetição da fala, na próxima vez: Você vai passar, minha
filha! É isso: ela achava que eu era inteligente e eu gostava disso e nunca a
desmenti. Omissões a serem perdoadas.
Também
vejo em mim um pouco da sua dureza, principalmente nas relações, na incapacidade do perdão. Suas dificuldades
com o meu pai, ela as transformou todas em lamentos e nos fez sentir por ele o
que ela mesma sentia. Demorei muito para compreender que os meus sentimentos em
relação ao meu pai não eram, de fato, meus. Tarde demais.
A meditação e a
oração são as possibilidades nas quais busco hoje essa compreensão. Também é na
religiosidade que tenho ancorado uma esperança de reencontrá-la, de
reencontrá-los a ambos, minha mãe e meu pai. Sonho com o dia da minha passagem
como um dia de reencontro. Tenho esperança de ser digna dessa dádiva. De ser
merecedora desse presente: abraçá-los e dizer apenas palavras de amor, de
perdão e de autoperdão. E enfim, saber e sentir que está tudo certo. Que tudo
está no seu devido lugar.
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