Por ocasião do primeiro estágio do doutoramento, conversando com a amiga com quem eu dividia apartamento, à mesa, numa das refeições que fazíamos juntas, ouço-a dizer:
___ Meu pai nunca trabalhou no pesado. Trabalhou a vida inteira. Até hoje trabalha: comanda os peões na fazenda, dá ordens aos vaqueiros, administra a fazenda. (...) Gosto muito de carne. Acho que é porque fui criada na fazenda. Nunca faltava carne. Vi matarem vaca, porco... Eu ajudava na limpeza. Minha mãe sempre fugia; eu, não! Eu ajudava!
Não presto mais tanta atenção à sua fala. As últimas palavras, ouço-as como se estivessem sendo ditas bem longe de mim. Viajei.
A referência que ela fez ao pai remeteu-me a lembranças do meu próprio.
Ao ouvi-la falar assim, uma imagem invade meu pensamento. Tão clara e tão real que dói e que me sacode por inteira. E já faz tanto tempo!
Minha voz sai diferente. É difícil continuar a conversa. Uma lágrima grossa me interrompe a visão. E outra, e mais outra. Preciso tossir algumas vezes. A tosse me recompõe. Preciso piscar com força para ver se as lágrimas se dissipam e desistem.
Meu pai comprava ossos nos açougues de Lins.
Às vezes, ganhava-os.
Minha mãe os cozia numa grande panela, guarnecidos com quiabos, maxixes, batatas doces, mandiocas,... o que tivesse.
Não eram ossos. Para nós não eram apenas ossos.
Havia a inabilidade do açougueiro em desossar as carnes. Ou será que era por piedade? O fato é que havia carne também. Uma carne que exigia estratégias de guerra para ser encontrada nas juntas, nas cartilagens: era preciso cutucar bem no fundo daquelas reentrâncias com uma ponta de faca, raspar com qualquer instrumento que fosse eficaz, desmontar encaixes de articulações. E lá estava ela.
Além disso, havia o tutano. Meu pai pegava aqueles ossos recém-saídos de um panelão que fervia num fogão de lenha e segurava-os com um pano porque estavam quentes e precisavam ser comidos quentes.
Os ossos, aos meus olhos, pareciam de dinossauro, tão grandes se materializavam no meu ângulo de visão ou talvez por causa da minha pequenez.
Ele emborcava os ossos, deixando a abertura na direção de um prato, uma panela ou outro vasilhame qualquer que desse conta do tamanho do osso e batia nele. Batia com um martelo. E o tutano descia num tubo compacto, mas flexível e já ia caindo e se desfazendo e se quebrando em pedaços. Tão quente!
Um calor que, de lembrança, me aquece agora as mãos gélidas e endurecidas pelos sete graus que faz lá fora na capital paulista.
E comíamos todos. Com arroz. Com farinha. Comíamos.
Faz tanto tempo! Mas ainda agora vejo as lascas de lenha em brasa, a fumaça subindo do fogão. Ouço as vozes, sinto o cheiro do tutano, vejo a farinha transformando-se em pirão.
E vejo meu pai: mãos grossas, rudes, calejadas pela lida e pelo cabo de ferro do carrinho que ele arrastava pelas ladeiras linenses à cata de ferro velho. Vejo-o nitidamente, segurando, com firmeza, aqueles ossos. E vejo o tutano descendo. E ouço o barulho do martelo!!
Não consigo mais comer!
Engasgo. Tento tossir de novo!
Faz sete graus lá fora. Faz sete graus no meu coração!
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