segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Voltar


Que belo verbo! Que bela imagem! Retorno, regresso, retomada, recomeço. Um professor que tive, de Literatura Brasileira, dizia-nos que viajar é muito bom; que a viagem nos faz voltar melhores. A distância nos possibilita, na verdade, nos obriga a um redimensionamento da vida que temos levado, das relações que temos estabelecido.
Longe, vemos o que, de fato, é essencial. Aparamos as arestas, limpamos a visão daquilo que a turva no cotidiano, mas que não sobrevive a uma análise mais apurada. De longe, é poeira, não tem a mínima importância, é bobagem.
Estou de volta, depois de cinco longos meses e quinze dias de ausências e de saudades.
A minha casa, os meus filhos, o meu marido, a minha rotina continua a mesma, mas ... não é mais a mesma. Que prazer ver meus filhos retornarem da escola! Que sensação boa estar com eles à mesa para o almoço. Que presente de Deus o café cheiroso, no domingo pela manhã, eu e meu amado, quando os pequenos ainda dormem.
Conversa fiada, planos para o futuro, contas a pagar... e o café fumegando, aquecendo a alma.
Dormir na minha cama!! Meu Deus, como é bom!!
E pensar que, antes da viagem, vínhamos reclamando do colchão velho e incômodo, afundado na forma dos nossos corpos já marcados pelo incomensurável do tempo.
Agora é uma maciez que causa espanto!
Bom tomar banho no meu banheiro, vestir as roupas que ficaram pra trás, fazer uma tarde de pastéis para molecada e cuidar dos sobrinhos.
A vida se transformou.
É. Meu professor tinha razão.
Ao voltarmos de uma viagem, nos tornamos melhores vizinhos, melhores pais, melhores irmãos, melhores amantes...
Tudo o que nos infelicitava antes passa a ter importância menor, já não dói tanto.
Dizem que conselhos não são bons. De fato, tenho algumas restrições a eles. Parece que quem vê de fora os nossos dramas, os nossos dilemas e as nossas limitações não dá conta de vê-los em toda a sua complexidade. Mesmo assim, vou arriscar um para o meu leitor: viaje!
Se não é possível sair do estado, vá até um hotel fazenda, vá a Guajará-Mirim, Cacoal, Vilhena. Vá, pelo menos, a Ariquemes. Se não der, pare em Candeias.
Se mesmo assim, ainda é impossível, então, mude-se num final de semana. Hospede-se num hotel aqui mesmo. Fique dois ou três dias... Experiencie a sensação de ser um estrangeiro, de estar num lugar que não é seu, dormindo numa cama que não é a sua, comendo alimentos diferentes, apreendendo hábitos, valores e rotinas que não são as suas.
Depois, arrume as malas e volte. A vida será muito melhor!
Eu, pelo menos desta vez, pretendo seguir este conselho.
Espero que a magia desses dias de vida nova dure muito tempo, mas, quando eu sentir que ela começa a esvair-se, que ela inicia um processo lento de extinção, vou fazer uma viagem. Não preciso de sofridos cinco meses e quinze dias, nem preciso ir longe. Quero apenas olhar a minha vida com olhos de ver e percebê-la dádiva, presente e milagre.
Aí, então, volto para os meus.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A minha primeira vez


Tudo o que vivemos pela primeira vez é, de algum modo, especial. Pelo bem ou pelo mal, a primeira vez nos marca. As relações que vamos estabelecer, depois, podem estar completamente modificadas ou sofrer interferências das lembranças que ficaram do primeiro momento.
Meu pai nos contava as emoções da sua primeira alpercata, que ele chamava précata. Dizia que tinha experimentado algo para proteger os pés somente quando já estava com dezessete anos. Nós ríamos muito quando ele falava da primeira noite com elas, pois, não tendo coragem de tirá-las dos pés, tal era o encantamento, dormira calçado.
Há algumas primeiras vezes contadas com um certo glamour, com poesia.
A que passo a contar agora, talvez até tenha tido um certo charme, diferente, porém, de tudo o que o leitor possa imaginar.
Minha irmã mais velha, que foi nosso arrimo durante muito tempo, trabalhou, como empregada doméstica, em algumas casas de família.
Essa expressão casa de família é esquisita, na medida em que é tão comum haver casas cujos habitantes podem ser chamados de qualquer outro substantivo coletivo, menos família, como, por exemplo, a primeira casa na qual ela trabalhou.
Para termos uma idéia, a dona da casa chegou até a lhe dar comida no mesmo vasilhame no qual serviam a comida do cachorro.
Bem, mas o caso não é esse. Numa outra casa (e essa fazia podia se chamada assim), minha era tratada como gente que era. Freqüentemente, ganhava roupas usadas que, para nós, as usuárias em potencial, nos pareciam novíssimas e lindas.
Quando aconteceu, eu já estava com seis anos de idade.
Numa das trocas costumeiras de escovas de dente da família, minha irmã guardou as descartadas e trouxe as para casa.
Nem preciso dizer o que significou para mim, escovar os dentes pela primeira vez, aos seis anos de idade.
Padeci, de dentista em dentista, ao longo da vida, para consertar os estragos causados pelo tardio desse encontro.
Poderia, porém, ter sido pior, sem as benditas escovas.
Fico feliz, hoje, ao ver meus filhos com sorrisos saudáveis; principalmente, com o sorriso do Lucas, muito parecido com o meu, quando ainda tinha grandes e lindos dentões, bem branquinhos, sem os buracos escuros das privações.


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Chinelos e mágoas


Outro dia, conversávamos sobre as artes que as crianças fazem. No grupo de pais já escolados e de outros em potencial, alguns diziam que criança adora fazer o que é proibido. Será que isso os diferencia dos adultos? Penso que não. A diferença é que os pequeninos fazem por desconhecimento de regras e os adultos como transgressão.
A conversa ia boa, gostosa, até que alguém comentou o gosto dos anjinhos em pisar, descalços, na terra quente.
Aquela fala me deu uma tristeza enorme. Melancólica, disse que só há prazer quanto pisam por opção.
Sei do que estou falando. Durante algum tempo, encarei essa de terra quente.
Havia um único par de chinelos para mim e para a minha irmã. Por coincidência, nós estudávamos em horários alternados. Eu ia pela manhã. Nos encontrávamos no meio do caminho, ela descalça e eu com as sandálias. Trocávamos. Ela seguia para a escola calçada e eu voltava com os pés desprotegidos.
Eu morria de vergonha de ir descalça. Além da vergonha, havia o sol das duas horas da tarde deixando a terra em brasa no verão do interior de São Paulo. Os pés reclamavam. Acho que os dela também. Mas não falávamos sobre o assunto.
Era um período duro. Se as tiras quebravam, nós as consertávamos com grampo de cabelo. Não havia outra saída.
Lembro-me de um dia horroroso. Brigamos. Por qualquer desses motivos que fazem os irmãos brigarem feito gato e cachorro, se prometerem ódios eternos e, logo depois, esquecidos, voltarem a ser como antes.
No nosso caso foi diferente. 
Não pude superar a mágoa imediatamente. Superei- a pouco tempo depois, mas não no mesmo dia.
Chegou a hora da troca e eu, má, segui calçada para casa. Acho que mesmo que eu doasse todas as sandálias do mundo aos que andam descalços, nem assim, esqueceria aquele dia.
Minha irmã era forte. Ainda é. Não foram o pé no chão nem todo o sofrimento que veio depois capazes de derrubá-la. Mas a mim, aquele dia sempre soou como um dia dolorido.
A mágoa é horrorosa. Nos enevoa o olhar. O coração não enxerga mais, não distingue o que é bobagem daquilo que é imperdoável mesmo.
Tenho tentado seguir duas normas, na minha vida: só fazer aquilo que eu posso contar aos outros e só me preocupar e sofrer com um fato se eu me perguntar se depois de um ano passado ele ainda terá importância e a resposta for positiva.
O episódio do chinelo me envergonha. Conto-o porque já sou capaz de me perdoar hoje.  Mas ele não deixa de ser triste. Muito triste.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Mãe di-vi-di-da


O pesquisador jamaicano, naturalizado canadense, Stuart Hall, defende que somos seres descentrados, cujas identidades, em função da modernidade, encontram-se deslocadas, fragmentadas e que, muitas vezes, são contraditórias entre si. Se já somos duo-hifenados, sujeitos culturais híbridos, como também nos conta Homi Bhabha, atravessados por múltiplos lugares sociais e papéis, na função materna, esse deslocamento se arraiga ainda mais; a maternidade o potencializa ao máximo.
A maternidade nos torna seres divididos. Não seremos jamais um ser uno, após termos gerado filhos.
Fui tendo clareza dessa divisão na medida em que fui gerando os meus filhos. Com o Thiago, me vi partida em duas. Com a Larissa, havia três partes de mim circulando pela vida, sempre buscando se encontrar. O Lucas, definitivamente, me fez experienciar a existência dividida em quatro partes.
Quando pequenos, dormindo no quarto ao lado, sempre ao nosso lado, a ilusão de que sentir-me despedaçada era apenas uma sensação sobrevive bravamente. Mas, na medida em que eles vão para o mundo, o sentimento de incompletude nos toma por inteiro.
Aprendi que ser uma mãe boa é deixar ir, é criar para o mundo, é possibilitar voos altos e distantes. Acreditei nessa “roubada” e preparei os meus para alçarem grandes voos.  Muitas vezes, me arrependi de ter sido uma mãe tão boa aluna e me perguntei se não seria melhor tê-los, todos, amarrados ao pé da mesa, protegidos.
Isso se tornou mais claro para mim, outro dia, quando me vi respondendo a uma pesquisa sobre o que é paz da seguinte forma.
“Paz para mim, a sensação de paz plena é a que eu vivencio, já há algum tempo, especialmente à noite, mais nos finais de semana, quando meus filhos vão a festas, a aniversários, a shows, enfim, vão encontrar a galera, como eles falavam até bem recentemente.
Já de madrugada, naquele sono de vigília, ouço um carro que para em frente de casa e o portão se abre e um deles entra: é o caçula; depois, um carro que estaciona, ouço a porta se abrindo de um jeito único e eu sei que é o mais velho voltando; por fim, outro carro estaciona fazendo o barulho conhecido das manobras para caber na sua vaga; outra vez, o som da chave na fechadura, uma porta que se fecha e a luz da varanda é apagada: minha filha que chega. 
São minhas partes, de volta. Meus filhos que sobreviveram outra noite na “night”.”
Nessa fase em que vivo agora, a qual muitos nomeiam de “ninho vazio”, o mais velho se casou, mas ainda mora na mesma cidade, bem perto e eu o vejo, ainda, voltar, mesmo que provisoriamente. O caçula, na faculdade e iniciando no mercado de trabalho, está pouco tempo em casa, na maior parte no quarto, com os aparatos tecnológicos que o conectam ao mundo – e o desconectam de mim.
E a do meio, está fora do país, fazendo um intercâmbio que eu apoiei, incentivei e possibilitei. E há arrependimentos para os três verbos, de sobra.
 Então, sinto-me, muito mais fortemente, di-vi-di-da.
O fato de ela estar mais distante, em outro país, me torna uma mãe frágil, insegura, medrosa, pois sei que, se ela precisar desta “supermãe salvadora de todos os perigos do mundo” - porque é assim que nós, mães, nos sentimos, a despeito e termos provas incontestes, todos os dias, da nossa fraqueza e da nossa falibilidade - eu sei que não poderei ir correndo até ela.
Mas, como nada dura para sempre, minha loirinha está de volta. Daqui a exatos sete dias, eu a abraçarei no desembarque do aeroporto Jorge Teixeira e vivenciarei, mesmo que por pouco tempo, a plenitude da minha inteireza, com meus três filhos respirando, como eu, mesmo ar de Rondônia, de Porto Velho.
Recarregarei as baterias para, logo, logo, me ver cortada em pedaços, outra vez.
Outras vezes.
E a próxima vez já se anuncia: é que serei avó, serei “mãe duas vezes”; então, já preparo o corpo e a alma para novos cortes, para novas divisões. E me multiplico, como multiplica, também, meu amor por estes que serão, no futuro, as testemunhas da minha passagem pelo mundo. Neles, nos quais sei que permanecerei viva, sempre.
Assim, espero a Letícia e.... quem mais chegar!