quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Chinelos e mágoas


Outro dia, conversávamos sobre as artes que as crianças fazem. No grupo de pais já escolados e de outros em potencial, alguns diziam que criança adora fazer o que é proibido. Será que isso os diferencia dos adultos? Penso que não. A diferença é que os pequeninos fazem por desconhecimento de regras e os adultos como transgressão.
A conversa ia boa, gostosa, até que alguém comentou o gosto dos anjinhos em pisar, descalços, na terra quente.
Aquela fala me deu uma tristeza enorme. Melancólica, disse que só há prazer quanto pisam por opção.
Sei do que estou falando. Durante algum tempo, encarei essa de terra quente.
Havia um único par de chinelos para mim e para a minha irmã. Por coincidência, nós estudávamos em horários alternados. Eu ia pela manhã. Nos encontrávamos no meio do caminho, ela descalça e eu com as sandálias. Trocávamos. Ela seguia para a escola calçada e eu voltava com os pés desprotegidos.
Eu morria de vergonha de ir descalça. Além da vergonha, havia o sol das duas horas da tarde deixando a terra em brasa no verão do interior de São Paulo. Os pés reclamavam. Acho que os dela também. Mas não falávamos sobre o assunto.
Era um período duro. Se as tiras quebravam, nós as consertávamos com grampo de cabelo. Não havia outra saída.
Lembro-me de um dia horroroso. Brigamos. Por qualquer desses motivos que fazem os irmãos brigarem feito gato e cachorro, se prometerem ódios eternos e, logo depois, esquecidos, voltarem a ser como antes.
No nosso caso foi diferente. 
Não pude superar a mágoa imediatamente. Superei- a pouco tempo depois, mas não no mesmo dia.
Chegou a hora da troca e eu, má, segui calçada para casa. Acho que mesmo que eu doasse todas as sandálias do mundo aos que andam descalços, nem assim, esqueceria aquele dia.
Minha irmã era forte. Ainda é. Não foram o pé no chão nem todo o sofrimento que veio depois capazes de derrubá-la. Mas a mim, aquele dia sempre soou como um dia dolorido.
A mágoa é horrorosa. Nos enevoa o olhar. O coração não enxerga mais, não distingue o que é bobagem daquilo que é imperdoável mesmo.
Tenho tentado seguir duas normas, na minha vida: só fazer aquilo que eu posso contar aos outros e só me preocupar e sofrer com um fato se eu me perguntar se depois de um ano passado ele ainda terá importância e a resposta for positiva.
O episódio do chinelo me envergonha. Conto-o porque já sou capaz de me perdoar hoje.  Mas ele não deixa de ser triste. Muito triste.

Um comentário:

  1. Tia querida, eu já havia lido esse texto no livro e me emocionado muito. Li novamente e estou aqui em prantos. Deus é maravilhoso né? Hoje vc pode ter vários pares de sapatos. Vc tem um coração de ouro. Tenho certeza que sua irmã se orgulha muito de vc, assim como todos nós.
    Tô curtindo muito o blog!
    Beijo carinhoso. Fran.

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