segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Seu Inácio


 

Ele é uma pessoa especial. É raro poder afirmar que alguém é especial nos dias de hoje, onde tudo está tão massificado: às vezes, tenho a impressão de estar vendo uma multidão de robôs vestidos da mesma forma, falando, cantando, pensando do mesmo modo, Meu Deus!
Seu Inácio deve ter, no chute, entre sessenta e setenta anos (eu sou muito ruim de chute!), mora na mesma rua que eu e é o marido de uma professora amiga minha. Ele está no seu segundo casamento. É aposentado. É falante, curioso, vivo. Conversa muito e demoradamente sobre tudo: política, educação, tecnologia, etc.
O grande problema do Seu Inácio é que ele dispõe de um tempo que nós não podemos nos dar o luxo de dispor, jogando conversa fora. O homem contemporâneo perdeu a medida do tempo e não consegue mais lidar com ele de forma saudável. O dia sempre parece menor, o trabalho está sempre atrasado e nunca damos conta dos compromissos assumidos. O Seu Inácio é um homem que merece o tempo das pessoas.
Quando ele se mudou para a minha rua e foi aos poucos conhecendo as pessoas, foi se aproximando de todos: um cumprimento no portão de casa, um comentário sobre o tempo e, depois, longas conversas.
Acho que por saber que somos professores, meu marido e eu, o Seu Inácio, talvez ainda acreditando que os professores sabem das coisas, passou a nos procurar com suas dúvidas, seus dilemas, suas curiosidades.
Um dia, num domingo bem cedinho, Seu Inácio nos bate à porta. Ao abrir, ainda sonolenta, ele me pergunta, de chofre:
__ Professora (ele só me chama de professora), o Colosso de Rhodes? O que foi o Colosso de Rhodes, professora? Foi algo grande! Sim, porque colosso vem de colossal, que é grande. Então sabemos que foi uma coisa grande, mas o quê, professora?
Eu, ainda meio fora do ar, disse que não tinha a menor idéia, Seu Inácio! E ele, sem me dar tempo de responder, na lata:
__ Pesquise, professora, pesquise. Precisamos saber!
É mesmo, Seu Inácio, como é que eu sobrevivi tantos anos sem saber o que era o Colosso de Rhodes?!
Dias depois, contando esta história aos meus alunos, que eu achei belíssima, um deles me disse que o Colosso de Rhodes foi uma estátua gigante de pedra que ficava no mar; era tão grande que os navios passavam no meio das suas pernas; disse também que é considerada uma das sete maravilhas do mundo e que foi destruída num terremoto.
Fiquei animada de poder responder aos anseios do meu vizinho e logo que o reencontrei, contei o que o meu aluno havia dito. Seu Inácio ficou muito satisfeito.
Um tempo depois, veio solicitar ajuda para viajar na Internet: havia comprado um computador e entrado num curso de computação, mas estava infeliz, o curso era muito lento e ele tinha pressa. Foi, então, o Thiago, nas horas livres, lá pra casa do Seu Inácio.
Um dia, ele deixou na porta de casa um embrulho: era um presente para o seu novo professor.
Agradecemos o gesto carinhoso, dissemos que não precisava.
Ainda o ajudamos numa outra vez, agora sobre a etimologia do seu nome. Seu Inácio nos contava que o único nome cuja origem e significado ele nunca havia encontrado era o seu. Quando me dispus a procurar, ele nos surpreendeu: não se chamava de fato Inácio, seu verdadeiro nome era Isaurino.
Já que estava com o livro nas mãos, não custava dar uma olhada e lá estava: Isauro, do latim, igual a ouro. Isaurino, então, era o adjetivo que virou nome próprio, algo como de ouro, ou dourado.
Surpreso por acharmos os nomes e feliz com os significados, lá se foi o Seu Inácio, feliz da vida, acreditando ainda que os professores sabem das coisas.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Huummmm! Delííííícia!!!!



Era por volta de seis horas da manhã. Manhã de um domingo. Dia 15 de julho de 2012.
Estávamos exaustos. Vínhamos de uma experiência que, cada vez mais, as pessoas estão vivenciando na cidade de Porto Velho, que inchou – e não cresceu – após e durante o advento das usinas: batida no trânsito. Se bem que, naquele caso, nem foi por causa do aumento da frota e nem da negligência de outros motoristas.
Foi por causa de negligência sim, mas apenas do meu caçula, recém-motorista, antes da conscientização de que um carro é uma arma e de que, à noite, deve-se parar até no sinal verde e dirigir com velocidade máxima de 50 quilômetros por hora etc. essas informações que nós, pais, repetimos, incansavelmente, e que eles, os filhos, já nem ouvem mais, e chamam de blá-blá-blá. Enfim, o acidente foi antes de ele amadurecer como motorista.
Fui acordada por volta das quatro horas da manhã, pelo mais velho que, esbaforido, tentava achar os dados da seguradora. Em seguida, e antes que pudesse respirar e assimilar a notícia, outro telefonema. Desta vez, era uma amiga da minha filha que, tão esbaforida quanto, me dizia: Tia, estamos indo aí te buscar! O Lucas está queimado!
Quem é mãe pode imaginar meu desespero.
Levantei-me, troquei de roupa e saí reunindo o que eu julgava que seria útil: algodão, rifocina, soro fisiológico, pomada contra queimadura.
Chegando lá, vi o Lucas, em pranto, com o braço queimado: o air bag abriu um minuto após a batida e soltou um ar quente que o atingiu. Além disso, um pequeno hematoma próximo ao olho e um corte no braço.
Um amigo, com o nariz sangrando e outra amiga, com as marcas da freada causadas pelo cinto de segurança.
Depois...bem, depois o de sempre: contato com seguradora, guincho, espera, justificativas, explicações e mais espera.
Soube depois que a galera que lá estava reunida quando eu cheguei – é impressionante a capacidade que eles têm, em tempos de celular e de internet, para se comunicarem: é instantâneo, imediato - se preparou para ouvir a bronca que eu daria.
Como uma mãe que sabe que o filho sofreu um acidente de trânsito e que está ferido pode brigar antes de acudir, socorrer, fazer curativo, abraçar, acalmar? Pudemos rir dias depois, que é o que fazemos todos nós quando os imprevistos que nos ocorrem não são fatais e podem, com o tempo, ser esquecidos.
Voltemos agora às seis horas da manhã, horário com o qual iniciamos essa conversa.
À mesa da cozinha, atordoada, com dúvidas sobre se conseguiria voltar a dormir, pensei num chá.
Aqueci a água meio em câmera lenta, escolhi camomila, é claro, e aguardei o tempo necessário da infusão. O Lucas já no quarto, ressabiado, assustado ainda.
Aí vi minha linda menina, sentada à mesa também e me vi perguntando-lhe:
__ Você quer chá, filha?
E ela:
__ Quero, mãe, vou ficar aqui com você e tomamos chá juntas.
Assim que eu a servi, ouvi sua voz:
__ Huuummmm, delícia! E tomamos juntas e demoradamente o chá, vendo a claridade do dia vir chegando.
Precisei de alguns dias para entender o que houve naquele dia: a Larissa detesta chá! Jamais toma chá!
Só então constatei o seu gesto generoso e solidário. Não pôde me deixar sozinha na cozinha, o dia amanhecendo, eu, naquele estado de perplexidade.
Dividindo o chá comigo, sentiu-se dividindo as minhas dores também.
Em dias difíceis, esta lembrança me aquieta a alma. Posso me perdoar pelas minhas limitações, pelas minhas fraquezas.
Se fui capaz de gerar seres humanos tão delicados – e eu fui – é que houve acertos na caminhada.
Graças.
Assim, nesses dias difíceis, me lembro, às vezes, dessa loirinha dizendo:
__ Huuummmm, delícia!
E rio, feliz!
Como estou rindo agora.

Meias, cabelo e determinação


Adoro as pessoas determinadas, donas do seu nariz, que sabem o que querem  e não se importam com a opinião alheia.
Talvez por ter demorado a conseguir ser assim. Os outros sempre foram o meu inferno. Fui ensinada a me preocupar com o que os outros vão falar, com o que os outros vão pensar.
 A vida me ensinou que os outros não pagam as minhas contas. Os outros não estão preocupados com a minha felicidade. Os outros não querem saber se há feijão na minha mesa. Os outros são os outros.
Queria ter sido assim desde pequena.
Por isso, gosto muito de educar meus filhos para que sejam livres dos outros. Para que sigam seus valores, para que sejam dignos, decentes, mas não cobaias dos outros.
O meu filho Lucas é a personificação desse tipo de personalidade.
Recentemente, ele estava com poucas e velhas meias e reclamou. Fui, então providenciar uma renovação das próprias. Com pressa, atrasada e cheia de compromissos para ontem, acabei por comprar um tipo de meias que ele não costumava usar. Ao invés de comprar as tipo soquete, de cano curto, boas para usar com tênis, comprei, por engano, umas de cano longo, com a estampa de um desses personagens de desenho animado que passa na tevê.
No dia seguinte, ouvi a Larissa mal humorada dizer que não iria para a escola com o irmãozinho vestido daquele jeito, que ele a mataria de vergonha.
Fui ver o que acontecia para, como toda mãe, sempre, apaziguar os ânimos. Encontrei um leãozinho com as meias esticadas até a altura do joelho, encontrando se com a barra da bermuda, decidido a usar as suas meias assim. Tinha adorado a estampa e queria que ela ficasse à mostra.
Argumentei que não era assim que ele estava acostumado a usar. Que os colegas estranhariam e até ririam dele, e o ridicularizariam.
Não se importou. Queria ir assim. Não estava fazendo mal a ninguém. Não ligaria para as chacotas dos coleguinhas, se elas acontecessem.
E foi. Comentei com o Tito que ele, com certeza, não suportaria as pressões na escola e acabaria abaixando as meias.
Me enganei completamente.
O Lucas voltou ao meio dia com as meias na altura dos joelhos, com um olhar de felicidade suprema. Fiquei muito feliz. Meu filho já sabe o que quer. E tem apenas seis anos.
 Num outro episódio, travou uma briga com o pai. O motivo dessa vez era o cabelo. O pai gosta de vê-lo com um corte surfista. Ele adora máquina dois na cabeça inteira. O pai argumenta que fica feio. Que a cabeça dele é meio torta, que não fica bem.
Ele retruca dizendo que a cabeça é dele. Que é ele quem tem que escolher. Que aquele corte não o prejudica e nem prejudica outras pessoas. Qual o problema?
No salão, comigo, enfrenta uma nova batalha. Muitas mulheres, todas dando palpites:
__ Vai cortar? Corta surfista. Vai ficar lindo.
__ Por que não corta com franjinha, arredondando na nuca. Esse cabelo loirinho vai ficar uma graça!
Lucas silencioso, calmo, tranquilo.
Na hora H, a cabeleireira, Neide, pergunta:
__ E aí, Neusa? Como é que eu corto?
Eu, rindo um pouquinho por dentro, respondo:
__ Neide, pergunte ao Lucas. Vai ser do jeito que ele quiser.
E ele, sereno:
__ Pode passar máquina dois na cabeça inteira!
Voltamos do salão. Um carequinha vem ao meu lado, feliz. Em casa, o pai, sem tato:
__ Ah! Lucas! Ficou feio.
__ Pai, eu gosto assim.
Eu também, meu filho. Eu gosto assim.