domingo, 27 de setembro de 2015

Mulheres antigas

Minha irmã, numa conversa, me diz:
__ Hoje, encontrei um velhinho querendo conversa no mercado. E a reclamação dele é que as mulheres atuais são diferentes da esposa dele: usam seu dinheiro só para comprar roupas e joias; exigem babá, comer de marmita, passadeiras, lavadeiras etc.
E continuou:
__ Então me senti uma mulher antiga, já que nunca exigi nada disso e fui cozinhar, lavar, passar, pagar minhas contas....
Só rindo.
Lembrei-me de minha mãe, na hora. O velhinho, com certeza, a chamaria de mulher antiquíssima. Ela, por exemplo, vivenciava o processo de produção dos alimentos desde o início, participando de todas as etapas. Vejo-a na roça, plantando e colhendo café; depois, à beira do fogão de lenha, torrando-o. E ainda moendo, e fazendo aquele café cheiroso e forte no coador de pano pendurado na mariquinha.
Hoje, eu me limito a ir ao mercado, comprar o café e, já em casa, pôr a quantidade desejada juntamente com a água na cafeteira, que faz o restante do trabalho. Pra falar a verdade, nem isso! Na minha casa, é o meu marido quem faz o café.
Mas, em pleno 2015, continuo lavando roupas, passando, cozinhando, limpando casa.... Os caminhos que trilhei me trouxeram para essas ações. Sei que sou vista com um certo estranhamento pelas minhas contemporâneas, como uma mulher deslocada do seu tempo e do seu espaço. Também me vejo e me sinto anacrônica, às vezes.
Mas, com relação às mulheres que já não são mais as mesmas, talvez não se trate apenas de se negarem às tarefas, mas de não saberem executá-las.
De fato, nós não desenvolvemos todas as habilidades das nossas mães. Nossas filhas também não desenvolveram todas as nossas habilidades.  Entretanto, nós desenvolvemos outras habilidades e o mesmo vale para as nossas filhas, em relação a nós.
Assim, não podemos avaliar a questão em termos de melhores ou piores. Somos diferentes, apenas isso. Cada época exige de nós saberes específicos. E é permeada por interesses diversos aos da fase anterior e assim, sucessivamente. E está tudo certo.
Os saberes da minha filha, por exemplo, com relação à tecnologia, aos usos e funções das redes sociais, por exemplo, eu estou longe de ter. E eu não espero que ela pinte a Mafalda numa camiseta, faça tricô ou crochê nem costure a mão.
Claro que há uma tentativa de mantê-las como nós, mesmo inconscientemente, de ensinar-lhes o que sabemos e que julgamos ser útil, importante. Quando a Larissa, minha filha, foi morar sozinha, para minha surpresa, eu a ouvi um dia me agradecer por ter-lhe ensinado a lavar um banheiro. Jamais imaginei que ela iria dar valor a este saber.  
É, minha irmã, somos mesmo mulheres antigas. Mas isso não nos impede de sermos atuais também. Ou de, pelo menos, tentarmos.
Por mim, venho tentando conciliar estes dois mundos. Vou continuar costurando a mão e cerzindo roupas, quando for necessário; vou continuar um diário que iniciei com escrita manuscrita; e ainda vou pintar e bordar.
Mas quero o novo também. Meu próximo desafio: aprender a postar vídeos no Snapchat. O primeiro foi cômico, um fracasso total. Calculei o que falar, sobrou tempo e fiquei com cara de boba. 
E o velhinho? E se a esposa se for antes dele? E as filhas e as netas? Como será que lida com elas?
Coitadinho! Se não aprender a ver com outros olhos a situação; a reconhecer que há perdas, mas que também há ganhos no processo; se não aprender a tirar proveito das mudanças, terminará a vida ressentido, sentindo saudades de um passado que não voltará e de uma mulher que não quer e/ou não pode mais ocupar aquele lugar.
As mulheres antigas estão em extinção. Sempre estarão, porque as mulheres atuais serão as mulheres antigas do futuro, vistas com espanto pelas jovens modernas de lá. É assim.


segunda-feira, 15 de junho de 2015

Como é bom ver gente feliz!

Sim. É muito bom! E nem precisamos de eventos extraordinários para que isso aconteça. O cotidiano, quase sempre, nos presenteia com momentos de imensa felicidade que são bons quando nós os vivenciamos e quando vemos acontecendo com os outros: brincar na chuva, pulando em poças de lama; viver o primeiro amor – e o segundo, o terceiro... todos os amores; sentir o sorvete no sabor preferido derretendo na boca num dia quente de verão... A lista seria infinita.
E é ainda melhor quando quem vê gente feliz também está feliz.  
No sábado passado foi assim.
Fomos ao Grego’s Original Pub assistir às apresentações das bandas Sexy Tape, Par de Sais – com meu sobrinho Rafael Izidoro mandando super bem na guitarra – e Versalle.
Jovens felizes, vibrando com a casa cheia. Já tocaram lá mesmo para trinta pessoas, disseram. Nos seus discursos, entre uma música e outra, o pedido para que a plateia busque conhecer e curtir a música – especialmente o rock – que está sendo produzida na região, a sua e a das demais bandas (e citaram nomes de várias); que as divulgue e as siga nas redes sociais, enfim, que as prestigie. Em resumo, a defesa de que há muita música boa sendo feita aqui. Na linguagem deles: Esse é o rock de Porto Velho! Tem muita música foda!
É verdade que muitas dessas produções não são acessadas. Eu mesma nunca tinha entrado naquela casa. Acho que, pelo menos as pessoas da minha geração, não conhecem o rock de Porto Velho.   
Quando a banda Versalle subiu no palco, tão aplaudida quanto, é que aconteceu, numa noite feliz, a cena mais feliz. Num dado momento, o vocalista Criston Lucas calou a voz e, apenas com o gestual, pediu que a plateia continuasse a cantar. E ela, em coro, o atendeu:
“E ela me diz que o amor vencerá as águas do mar que teimam em bater em mim....”
Foi aí, então, que ele recuou, rindo, como se se desse conta da situação, e virou o rosto para um lado, olhos nos olhos do parceiro Rômulo, e de novo para o outro lado, olhos nos olhos do parceiro Miguel, e os olhos dos três se conversaram, cúmplices, como se confirmassem o que já previam. E como se dissessem uns aos outros: Está acontecendo! Viu, cara!? É isso!!
Em situações felizes, eu costumo pedir: Me belisca!
Lindo de ver. Gente muito feliz! Crianças lambuzadas com seu sorvete predileto! Felicidade em estado bruto, sem aditivos. Plena, pura, perfeita!
 Eu, entre as pessoas mais velhas do recinto, vi a cena, encantada, e, com um sentimento maternal, me permiti uma oração silenciosa, de bênçãos a todos aqueles meninos.
Que eles não se percam de si. Que façam valer, nas suas vidas, o que está posto nas letras das suas canções.
Todos sabemos o quanto o sucesso pode ser bom. Mas sabemos também que o sucesso, na sua face mais cruel, pode triturar pessoas vivas.
Então, desejei naquele momento – e continuo desejando – que seus caminhos sejam verdes...
Que os caminhos de todos eles sejam ... de uma “verde mansidão”.
E continuo desejando que mais pessoas sejam felizes.
Ver gente feliz faz bem para a pele, alegra a vida, aquieta o coração e deixa a alma leve.

Ver gente feliz deixa a gente mais feliz!

domingo, 29 de março de 2015

Sobre lembrar...sobre esquecer


Inicio fazendo duas advertências aos leitores.
Primeira, a escrita deste texto se deu sob o impacto do filme Para sempre Alice, que assisti há alguns dias. Trata-se da história de uma professora de Linguística que se descobre, precocemente, aos 50 anos, com o mal de Alzheimer, cuja interpretação deu à Julianne Moore o Oscar de melhor atriz. Merecidíssimo. E o tema é atual. Sabe-se que as doenças degenerativas e as demências são alguns dos desafios da medicina, agora que estamos vivendo mais. Mas a incidência precoce do mal de Alzheimer ainda é um mistério.  
Segunda, sou hipocondríaca. Nunca fui diagnosticada, mas um bom hipocondríaco faz seu próprio diagnóstico. Assim, sou capaz de ler ou de assistir uma reportagem sobre uma determinada doença e, algum tempo depois, sentir os sintomas todos. É uma luta para eu, racionalmente, me convencer de que não é bem assim e me policiar para não correr à farmácia mais próxima.
Também preciso contar que tenho memória de elefante. Para o bem e para o mal. Sou capaz de recordar tudo de bom que me aconteceu, mesmo transcorrida uma vida inteira – e sou eternamente grata às pessoas que me fizeram o bem, mas não esqueço nunca as vilezas, as pequenas maldades, as traições. Pelo menos, eu acreditava nessa memória prodigiosa até agora.
Feitas as advertências e os informes, passo à história.
Tenho tido pequenos lapsos de memória, especialmente após a menopausa.
Sempre que ocorrem, comento com as pessoas mais próximas, atualmente elas são meu marido e meu filho caçula. E eles me dizem, despreocupados, que é natural, que é assim mesmo e que acontece com todo mundo.
Mas tenho pensado que não é tão normal. Assim, vou relatar alguns desses episódios:
O primeiro: eu estava na cozinha fritando batatas, quando o meu filho, fazendo um churrasco, me chamou pela janela e me pediu que recobrisse a parte interna de uma caixa de isopor com papel alumínio para ele pôr lá as carnes já assadas, com o objetivo de mantê-las mais quentes por mais tempo. Eu disse a ele que o faria assim que retirasse as batatas, para não me comprometer com duas tarefas simultâneas e para evitar acidentes. Eu, de fato, retirei as últimas batatinhas fritas e fui lá atendê-lo. Alguns minutos depois, eu o vi correr para dentro da casa, dizendo, esbaforido, que a casa estava tomada de fumaça e que eu havia esquecido de apagar o fogo. A consequência mais grave seria que a panela ficaria imprestável e a única solução seria jogá-la fora, se o Tito não tivesse feito  uma operação salvamento, com uma palha de aço. A panela ainda está lá, pronta para outras batatas.
O segundo: no início deste ano, fomos meu marido e eu visitar minha filha, em São Paulo e, depois, a minha sogra, em Inúbia Paulista, voltando para a casa da minha filha, no encerramento da viagem. Num sábado pela manhã, já no retorno, estávamos na feira, quando minha filha propôs que comprássemos os ingredientes para fazer um suco detox, tão em moda atualmente. Quando ela disse que teríamos que comprar gengibre, argumentei que não seria necessário, pois havia um pedaço na geladeira. Ela insistiu que não tínhamos gengibre na casa, mas eu garanti que sim e fomos embora sem comprá-lo. Apenas quando ela, em meio à feitura do suco, me pediu que o achasse na geladeira e quando eu não o encontrei é que me dei conta de que havia, sim, um pedaço de gengibre, mas lá na casa da minha sogra, onde, dias antes, eu havia feito um prato utilizando tal ingrediente. Minha filha salvou o suco, pois tinha em casa gengibre em pó, mas eu não me conformei com o esquecimento – até me lembrei do gengibre, mas não atualizei o local do seu uso.
O terceiro – mais grave: minha netinha Letícia de dois anos e dois meses estava comigo, à mesa, para o almoço. Eu fritara costelas de tambaqui e estava separando pedacinhos do peixe com as mãos para ela comer. A costela de tambaqui tem, é claro, aquelas grandes espinhas, mas tem também, na parte do dorso, espinhas finas, flexíveis, quase transparentes. Ela comia bem até que falou Ahn! e demonstrou um certo desconforto na expressão. Na hora, já pensei em espinha na garganta e me levantei alarmada com a possibilidade, pensando no que fazer. Meu filho, na cadeira ao lado, disse: Calma, mãe, ficar tensa não resolve a situação. E eu dizia: Meu Deus! E se for mesmo uma espinha?!? quando ela, mais uma vez, repetiu a interjeição e o desconforto, com carinha de choro. Antes que déssemos água e/ou farofa (que ela adora, apesar da pouca idade) – Olha aí o nordeste marcando presença como herança na família –, ela parou de demonstrar desconforto, apaziguou a expressão e voltou a comer novamente. Assim, concluímos que era mesmo uma espinha, mas que ela havia descido. Contei o ocorrido à minha nora, até para que ela ficasse atenta e monitorasse nossa pequenina, e também contei ao meu filho quando o encontrei. Ele me disse: Mãe, fica tranquila, Eu fico sossegado quando deixo a Letícia com você porque sei que você cuida muito bem dela. E é verdade. Ou era? Mas ele também me disse que à hora daquele almoço, tivera um sobressalto e ligara para a esposa perguntando, por duas vezes, se a Letícia estava bem e que ela respondera: Sim, está com a sua mãe!
Último episódio – bem mais grave: Minha irmã mais velha se submeteu a uma cirurgia e me pediu que viesse ajudar a cuidar dela. Vim para Natal/ RN com a intenção de cuidar realmente dela, com amorosidade.  Nós perdemos nossa mãe e, após a sua morte, alguns laços de família se desfizeram. Então, eu estava determinada a manter os que sobreviveram, e ela representa um desses laços que se mantiveram. A cirurgia foi bem sucedida. De volta à sua casa, optei por fazer uma lista da medicação e dos horários, para ficar mais claro e visível, numa folha só, já que a receita original estava em duas folhas. Li que o antibiótico deveria ser ingerido de doze em doze horas, mas registrei na minha anotação de seis em seis horas. Minha irmã teve fortes dores de estômago. No segundo dia da medicação, eu liguei para a médica informando tais dores e ela receitou uma medicação para acidez estomacal. Mas, até então, em nenhum momento, cogitamos a possibilidade de uma dosagem errada de algum dos medicamentos. Uma amiga dela ligou para saber da sua saúde, contou-lhe que já se submetera ao mesmo tipo de cirurgia e que também tivera dores estomacais, o que ratificou em nós a ideia de que estava tudo certo. Como não melhorava mesmo com o novo remédio, minha irmã optou por suspender a medicação e sei que foi isso que a salvou. Apenas quando voltou a tomar a medicação e que os remédios acabaram é que fomos descobrir o terrível erro. Na tentativa de comprar mais, o farmacêutico informara à minha sobrinha que não seria possível e que a quantidade vendida na primeira vez era suficiente para os sete dias de tratamento. Sei que todos os que compartilharam essa situação me perdoaram, inclusive a minha irmã. Mas eu não me perdoei. Ainda não. Lembrem-se de que eu ainda penso que tenho memória de elefante e que eu não esqueço. Me arrepio só de pensar se o pior tivesse acontecido.
A pergunta para a qual não tenho resposta é: O que houve com meu cérebro nos segundos entre retirar as batatas, mas não desligar o fogo; lembrar-me do pedaço de gengibre, mas não atualizar que eu o usei em Inúbia Paulista e não em São Paulo; segurar cada pequeno pedaço de peixe, mas não sentir a espinha; ler a receita e anotar diferentemente a informação?
Assim, temo não ser mais capaz de cuidar de uma criança ou de ler e seguir as orientações de uma receita médica.
É possível que eu não esteja doente, mas tenho medo de estar.
Como sei que há virtudes no medo – aliás, um livro que li há muitos anos cujo título era exatamente As virtudes do medoe que falava que o medo pode nos ajudar a evitar o perigo ou até mesmo a salvar nossas vidas – decidi que, ao retornar a Porto Velho, consultarei um neurologista. 
   Sei que há medicamentos para a memória e que, com eles, é possível retardar o processo no qual as nossas mais queridas e também as mais doloridas lembranças viram apenas uma página em branco.
Mas não posso encerrar esse texto sem reafirmar às pessoas que amo e que se sabem amadas por mim: se eu me perder de vocês, se eu me perder de mim, não se esqueçam de que eu amo vocês.
E também sem prometer: se eu me perder de vocês, se eu me perder de mim, vou tentar me lembrar, pelo maior tempo possível, do essencial que nos dá sustentação, a todos nós, ao longo da vida: o amor.