Inicio
fazendo duas advertências aos leitores.
Primeira,
a escrita deste texto se deu sob o impacto do filme Para sempre Alice, que assisti há alguns dias. Trata-se da história
de uma professora de Linguística que se descobre, precocemente, aos 50 anos,
com o mal de Alzheimer, cuja interpretação deu à Julianne Moore o Oscar de
melhor atriz. Merecidíssimo. E o tema é atual. Sabe-se que as doenças
degenerativas e as demências são alguns dos desafios da medicina, agora que
estamos vivendo mais. Mas a incidência precoce do mal de Alzheimer ainda é um
mistério.
Segunda,
sou hipocondríaca. Nunca fui diagnosticada, mas um bom hipocondríaco faz seu
próprio diagnóstico. Assim, sou capaz de ler ou de assistir uma reportagem
sobre uma determinada doença e, algum tempo depois, sentir os sintomas todos. É
uma luta para eu, racionalmente, me convencer de que não é bem assim e me
policiar para não correr à farmácia mais próxima.
Também
preciso contar que tenho memória de elefante. Para o bem e para o mal. Sou
capaz de recordar tudo de bom que me aconteceu, mesmo transcorrida uma vida
inteira – e sou eternamente grata às pessoas que me fizeram o bem, mas não
esqueço nunca as vilezas, as pequenas maldades, as traições. Pelo menos, eu
acreditava nessa memória prodigiosa até agora.
Feitas
as advertências e os informes, passo à história.
Tenho
tido pequenos lapsos de memória, especialmente após a menopausa.
Sempre
que ocorrem, comento com as pessoas mais próximas, atualmente elas são meu
marido e meu filho caçula. E eles me dizem, despreocupados, que é natural, que
é assim mesmo e que acontece com todo mundo.
Mas
tenho pensado que não é tão normal. Assim, vou relatar alguns desses episódios:
O
primeiro: eu estava na cozinha fritando batatas, quando o meu filho, fazendo um
churrasco, me chamou pela janela e me pediu que recobrisse a parte interna de
uma caixa de isopor com papel alumínio para ele pôr lá as carnes já assadas,
com o objetivo de mantê-las mais quentes por mais tempo. Eu disse a ele que o
faria assim que retirasse as batatas, para não me comprometer com duas tarefas
simultâneas e para evitar acidentes. Eu, de fato, retirei as últimas batatinhas
fritas e fui lá atendê-lo. Alguns minutos depois, eu o vi correr para dentro da
casa, dizendo, esbaforido, que a casa estava tomada de fumaça e que eu havia
esquecido de apagar o fogo. A consequência mais grave seria que a panela ficaria
imprestável e a única solução seria jogá-la fora, se o Tito não tivesse feito uma operação salvamento, com uma palha de aço.
A panela ainda está lá, pronta para outras batatas.
O
segundo: no início deste ano, fomos meu marido e eu visitar minha filha, em São
Paulo e, depois, a minha sogra, em Inúbia Paulista, voltando para a casa da
minha filha, no encerramento da viagem. Num sábado pela manhã, já no retorno,
estávamos na feira, quando minha filha propôs que comprássemos os ingredientes
para fazer um suco detox, tão em moda
atualmente. Quando ela disse que teríamos que comprar gengibre, argumentei que
não seria necessário, pois havia um pedaço na geladeira. Ela insistiu que não
tínhamos gengibre na casa, mas eu garanti que sim e fomos embora sem comprá-lo.
Apenas quando ela, em meio à feitura do suco, me pediu que o achasse na
geladeira e quando eu não o encontrei é que me dei conta de que havia, sim, um
pedaço de gengibre, mas lá na casa da minha sogra, onde, dias antes, eu havia
feito um prato utilizando tal ingrediente. Minha filha salvou o suco, pois tinha em casa gengibre em pó, mas eu não me
conformei com o esquecimento – até me lembrei do gengibre, mas não atualizei o
local do seu uso.
O
terceiro – mais grave: minha netinha Letícia de dois anos e dois meses estava
comigo, à mesa, para o almoço. Eu fritara costelas de tambaqui e estava
separando pedacinhos do peixe com as mãos para ela comer. A costela de tambaqui
tem, é claro, aquelas grandes espinhas, mas tem também, na parte do dorso,
espinhas finas, flexíveis, quase transparentes. Ela comia bem até que falou
Ahn! e demonstrou um certo desconforto na expressão. Na hora, já pensei em
espinha na garganta e me levantei alarmada com a possibilidade, pensando no que
fazer. Meu filho, na cadeira ao lado, disse: Calma, mãe, ficar tensa não
resolve a situação. E eu dizia: Meu Deus! E se for mesmo uma espinha?!? quando
ela, mais uma vez, repetiu a interjeição e o desconforto, com carinha de choro.
Antes que déssemos água e/ou farofa (que ela adora, apesar da pouca idade) – Olha
aí o nordeste marcando presença como herança na família –, ela parou de
demonstrar desconforto, apaziguou a expressão e voltou a comer novamente.
Assim, concluímos que era mesmo uma espinha, mas que ela havia descido. Contei o ocorrido à minha nora,
até para que ela ficasse atenta e monitorasse nossa pequenina, e também contei
ao meu filho quando o encontrei. Ele me disse: Mãe, fica tranquila, Eu fico
sossegado quando deixo a Letícia com você porque sei que você cuida muito bem
dela. E é verdade. Ou era? Mas ele também me disse que à hora daquele almoço,
tivera um sobressalto e ligara para a esposa perguntando, por duas vezes, se a
Letícia estava bem e que ela respondera: Sim, está com a sua mãe!
Último
episódio – bem mais grave: Minha irmã mais velha se submeteu a uma cirurgia e
me pediu que viesse ajudar a cuidar dela. Vim para Natal/ RN com a intenção de
cuidar realmente dela, com amorosidade.
Nós perdemos nossa mãe e, após a sua morte, alguns laços de família se
desfizeram. Então, eu estava determinada a manter os que sobreviveram, e ela
representa um desses laços que se mantiveram. A cirurgia foi bem sucedida. De
volta à sua casa, optei por fazer uma lista da medicação e dos horários, para
ficar mais claro e visível, numa folha só, já que a receita original estava em
duas folhas. Li que o antibiótico deveria ser ingerido de doze em doze horas,
mas registrei na minha anotação de seis em seis horas. Minha irmã teve fortes
dores de estômago. No segundo dia da medicação, eu liguei para a médica
informando tais dores e ela receitou uma medicação para acidez estomacal. Mas,
até então, em nenhum momento, cogitamos a possibilidade de uma dosagem errada
de algum dos medicamentos. Uma amiga dela ligou para saber da sua saúde, contou-lhe
que já se submetera ao mesmo tipo de cirurgia e que também tivera dores
estomacais, o que ratificou em nós a ideia de que estava tudo certo. Como não
melhorava mesmo com o novo remédio, minha irmã optou por suspender a medicação e
sei que foi isso que a salvou. Apenas quando voltou a tomar a medicação e que
os remédios acabaram é que fomos descobrir o terrível erro. Na tentativa de comprar
mais, o farmacêutico informara à minha sobrinha que não seria possível e que a
quantidade vendida na primeira vez era suficiente para os sete dias de tratamento.
Sei que todos os que compartilharam essa situação me perdoaram, inclusive a
minha irmã. Mas eu não me perdoei. Ainda não. Lembrem-se de que eu ainda penso
que tenho memória de elefante e que eu não esqueço. Me arrepio só de pensar se
o pior tivesse acontecido.
A
pergunta para a qual não tenho resposta é: O que houve com meu cérebro nos
segundos entre retirar as batatas, mas não desligar o fogo; lembrar-me do pedaço
de gengibre, mas não atualizar que eu o usei em Inúbia Paulista e não em São Paulo;
segurar cada pequeno pedaço de peixe, mas não sentir a espinha; ler a receita e
anotar diferentemente a informação?
Assim,
temo não ser mais capaz de cuidar de uma criança ou de ler e seguir as
orientações de uma receita médica.
É
possível que eu não esteja doente, mas tenho medo de estar.
Como
sei que há virtudes no medo – aliás, um livro que li há muitos anos cujo título
era exatamente As virtudes do medoe
que falava que o medo pode nos ajudar a evitar o perigo ou até mesmo a salvar
nossas vidas – decidi que, ao retornar a Porto Velho, consultarei um
neurologista.
Sei que há medicamentos para a memória e
que, com eles, é possível retardar o processo no qual as nossas mais queridas e
também as mais doloridas lembranças viram apenas uma página em branco.
Mas
não posso encerrar esse texto sem reafirmar às pessoas que amo e que se sabem
amadas por mim: se eu me perder de vocês, se eu me perder de mim, não se
esqueçam de que eu amo vocês.
E
também sem prometer: se eu me perder de vocês, se eu me perder de mim, vou
tentar me lembrar, pelo maior tempo possível, do essencial que nos dá
sustentação, a todos nós, ao longo da vida: o amor.
Lindo texto, professora!!Eu estou fazendo muitas mudanças em minha vida com a intenção de que minha memória melhore,pois para mim não há sentido em continuar vivendo sem poder interagir com meus amigos e familiares. Sei lá, posso até estar errada,mas é assim que penso.Beijos
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