segunda-feira, 7 de julho de 2014

Sobre a escrita

            Eu sempre gostei de enfrentar os desafios proporcionados pela escrita.
Dizia sempre (é estranho conjugar este verbo no passado!), em sala de aula e provava com um belo testemunho e farta exemplificação que a escrita transforma a vida das pessoas. Das que escrevem. Das que leem.
Infelizmente, muitos de nós somos frutos de uma escola que não nos ensinou que a nossa trajetória neste mundo é importante; ao contrário, ensinou-nos que a nossa história, a história da mulher comum e do homem comum não pode ser escrita. Só os grandes feitos, dos grandes homens merecem ficar para a posteridade.
Por isso, é difícil encontrar, no Ensino Superior, alunos que tragam consigo, ou tenham em casa, na sua arca do tesouro, um texto que tenham escrito aos doze, aos quinze anos de idade. Na escola, eles escreviam, o texto era corrigido, voltava com as marcas de tinta vermelha deixadas pelo professor, era rasgado ou posto dentro de um livro ou de um caderno e, esquecido, se perdia no tempo.
 Quando em sala de aula, dizia aos meus alunos que os textos que eles escrevem são o seu tesouro; que é preciso guardá-los; que, no futuro, será muito bom relê-los e viajar no tempo: Olha a pessoa que eu fui, as minhas aspirações, as minhas aflições, como era diferente o mundo em que eu vivia!
Costumo dizer que textos são presentes. Quando preciso ou quero presentear alguém, dou textos. Sou incapaz de dar um livro a alguém sem uma dedicatória.
Fico feliz ao imaginar, daqui a alguns anos, aquela pessoa abrindo o livro por acaso e revivendo as experiências que compartilhamos, a partir de um pequeno texto que a transporta. Naquele momento, não importará se eu já não estiver mais aqui; magicamente, sei que voltarei. Ela será capaz de ouvir minha voz, de sentir o meu toque, de lembrar se do meu jeito de ser: uma frase que eu costumava dizer, um gesto que me identificava dentre os demais etc. Mesmo se não estivermos mais próximos, mesmo se a vida tiver nos afastado.
Penso que devemos escrever. Sobre tudo. Sobre o que faz sofrer. Sobre o que faz rir. Sobre o sonho, a perda, o grande amor, o incomensurável desamor, a saudade, a solidão, as alegrias do cotidiano...
Por isso, escrevo.
Perpetuo-me neste mundo através da escrita. Meus textos são meus presentes para o mundo. Para aqueles que virão, para aqueles que já amo, mas que nunca verei, como costumo dizer, para os filhos dos filhos dos meus filhos.
          Na verdade, a escrita norteia um processo de conscientização do nosso estar no mundo, de reflexão sobre a trajetória realizada, das falhas, dos equívocos, da descoberta de sentidos outros − presentes dentro de nós, mas desconhecidos − tudo isso me faz, cada vez mais, querer escrever, querer desvendar um mistério que se vai fazendo realidade, a cada palavra, a cada período.
            E nós nos descobrimos outros. E eu me descubro outra.
Há, ainda, um outro processo. É verdade que é preciso conhecer para amar. Meus leitores são ex-alunos, parentes e amigos. Cada vez que os encontro, que conversamos sobre o que eu escrevi, vejo que os meus textos vão além daquilo que significaram, primeiramente, para mim.
Eles desvendam muito mais do que foi posto, do que foi escrito. Vivenciam, também, um processo de descobrimento, de desvendamento de quem são, o que pensam, o que sentem, a partir do sentido, do pensado, do vivido e do contado por mim, nas minhas escritas.
As coincidências entre as histórias, o riso e o choro nos faz mais próximos, nos humanizam e, com isso, melhoram nossa relação. Não há mais uma professora e uma aluna, uma tia ou uma irmã, não há mais as amigas apenas.
O compartilhar do texto nos transforma em pessoas que sofrem, que choram, que riem, que fazem maluquices e que sentem ou sentiram a mesma dor, a mesma solidão, a mesma saudade, a mesma perda. Nos iguala.
           As reações que um texto escrito possibilita vão, quase sempre, além daquilo que o próprio autor pensou.
          De fato, um texto não existe sem que haja um leitor para torná-lo vivo, para interagir nele e com ele e (re) construir significados, sentidos outros, a partir do seu universo, do vivido e sentido.
          Se é assim, e eu acredito que seja, a leitura tem a característica de ser, sempre, única e, ao mesmo tempo, de nos fazer vivenciar emoções semelhantes e de possibilitar uma interlocução que nos leva a tempos e a espaços diversos do nosso.
Outro tipo de reação mostra um pouco a nossa cara: muitos disseram e ainda me dizem que os meus textos são corajosos, que contam histórias impublicáveis, que nunca teriam tal coragem. Parece que somos um povo que não dá conta de assumir o que é. O que não é agradável deve ser empurrado para debaixo do tapete.
Não entendem que não há recuo, que só podemos vislumbrar o passado, do lugar onde estivermos no presente, não percebem que compreender o vivido e interpretar o trajeto nos faz melhores.
As histórias que conto são de pessoas comuns. Por isso, o riso e o choro. Por isso, nós nos sentimos tão iguais. Por isso, os abraços, as confidências.
Estranhos que, após a leitura, se tornam meus velhos amigos, contam-me seus dramas, seus desamores, suas lutas, se aproximam sem medo, sabem que sou feita eles, igualzinha. Não precisam ter medo. Estamos, finalmente, sem máscaras.
Dentre as razões para publicá-las neste blog é que a minha escrita tem características próximas às da oralidade e isso tem aproximado leitores ariscos. Vários deles me contaram que a primeira vez em que leram um livro inteiro foi quando leram o Parceiros de Jornada; sendo assim, se meus escritos aproximam as pessoas da leitura, esta função já justifica todo o resto. 
Continuo, portanto - com alguns intervalos causados pela necessidade do silêncio ou pelos desarranjos que a vida nos impõe, de vez em sempre - apresentando novas velhas histórias – aquelas coisas que quase nunca são contadas – de mulheres e de homens comuns que encontrei e que tenho encontrado ao longo da minha jornada.
São histórias de vida, com acontecimentos que, se não forem postos sob holofotes, correm o risco de se perder, o que é sempre lamentável, já que são os acontecimentos corriqueiros que, de fato, compõem as tramas do nosso cotidiano.
Nestes textos, há fragmentos de vidas, situações vivenciadas em diversas circunstâncias, dentre as quais umas muito felizes, outras mais alegres e divertidas e algumas que representam eventos memoráveis, como nos ensinou Castañeda, no seu livro O lado ativo do infinito, porque são experiências cujo significado transcende o aqui e o agora.
A médica Rachel Naomi Remen, no seu belo livro “Histórias que curam”, diz que
As histórias não são reproduzíveis porque nossas vidas são únicas. É nossa singularidade que nos dá valor e significado. No entanto, contando histórias também aprendemos o que nos faz semelhantes, o que nos liga uns aos outros, o que nos ajuda a transcender o isolamento que nos separa uns dos outros e de nós mesmos. (p.14)
Para a autora,
Todas as histórias são repletas de viezes e singularidades; misturam fatos e significados. Essa é a raiz de seu poder. As histórias nos permitem enxergar algo familiar com novos olhos. Naquele momento nós nos tornamos um convidado na vida de outra pessoa (...). (p.22)
Espero que estas histórias registradas aqui possibilitem essa familiaridade de que nos fala a autora citada, que possibilitem aos leitores rirem, chorarem, refletirem ou lhes traga “uma paz monstra”, como escreveu um leitor.
  



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