quinta-feira, 29 de junho de 2017

O bule térmico de cor berinjela

     Na casa da minha filha, há uma extensão que fica próxima ao sofá,  na sala, com três entradas. Quem está no sofá não precisa se deslocar atrás de uma tomada para carregar o celular.  Aliás, o carregador já fica conectado. Muito prático.  Comentei com ela essa praticidade. Na minha casa, na sala, as duas tomadas disponíveis  estão num local nada adequado;  temos que nos deslocar até outro cômodo para deixar o celular carregando sobre uma estante.
     Ela me disse : Mãe,  há uma máxima que diz "Se quiser uma solução rápida e fácil para um problema,  peça a um preguiçoso. É verdade! Essa extensão é coisa de preguiçoso. Mas gostei e lhe disse que faria o mesmo aqui em casa.
     Convenci meu marido de tal necessidade e, logo que possível, fomos comprar a tal extensão.
     Na entrada da loja, uma porta de vidro, com um adesivo com dizeres mais ou menos assim: Destinados à atender.
     Comentei: 
__ Olha como a língua portuguesa engana os falantes. É muito comum essa ocorrência - crase diante de verbo. Na perspectiva normativa, não haveria.
     No comércio, vemos sempre frases como "Camisetas à partir de vinte reais, por exemplo. Seguimos porta a dentro e ele já avistou, num balcão próximo,  uma ex aluna chamada Letícia.
     Sempre encontramos ex alunos, depois de mais de trinta anos na sala de aula.
     E ele já foi brincando com ela:
 __ Ah! Eu vim comprar uma extensão, mas, com essa crase, vou querer um desconto. E foi logo contando a ela o meu comentário. Língua de trapo! Depois dizem que mulher é que é faladeira!
     Fomos para o setor das extensões e a Letícia já me perguntando:
__ A senhora é professora?
     E eu:
__ É... sou. Quer dizer,  fui. Acho que sou né?  Estou aposentada, mas a gente não deixa de ser, né?
     Compra efetuada. Eu e o Tito na fila do caixa e Letícia se encaminhando para o setor de embalagem.
     Ainda na fila,  Letícia chega com a extensão numa sacola plástica. Delicadeza dela. O que é usual é o cliente efetuar o pagamento e apresentar o comprovante no balcão para retirar a mercadoria.
     Ela já vem entregando o produto, agradecendo a compra e informando:
__ Já avisei o meu chefe sobre o erro, viu!?
     Senhor! Não era necessário!
    Vi um setor de cafezinho próximo aos caixas e fui lá tomar um. Quando me virei, vi um moço vindo na minha direção.
 __ É a senhora que está falando mal da loja?
     E eu:
__ Não! Desculpe. Comentei em off. Meu marido é que contou para sua vendedora! Não era a minha intenção.
     Ai, meu Deus! Olha eu me metendo em confusão de novo! Ô carma!
     E ele, sorrindo:
__ Olha, a gente gosta de gente que apresenta a crítica e não que sai falando mal fora daqui. Muito obrigado!  Por isso, a senhora vai ganhar um brinde.
     E me entregou um pacote.
     Dentro, um bule térmico de cor berinjela. Lindo.
     Saímos da loja dando boas risadas. Ufa!

domingo, 18 de junho de 2017

Parada cidadã

     Muitas das pessoas da minha geração não dão conta da diversidade de gênero.  Seria hipocrisia afirmar o contrário. Nascemos numa época em que, oficialmente, havia homens e mulheres.  Os demais, onde estariam? Eram invisíveis. Estavam, provavelmente, em clínicas psiquiátricas, tratando de depressão e afins, ora considerados loucos. Na pior das hipóteses,  suicidas.
     Sou capaz de conceituar uns seis gêneros  apenas. Sabendo que não basta apenas conceituar, saber nomear. É preciso compreender.
     E há muito mais.
     Em Nova Iorque, em 2016, a Comissão de Direitos Humanos, buscando oficializar a multiplicidade das identidades de gêneros, reconheceu 31 nomenclaturas.
     Em 2014, o Facebook expandiu as possibilidades de identificação dos usuários para  muito além do par homem/mulher. Agora são 56 opções. Não é fácil,  realmente.
     Mas não dar conta não precisa, necessariamente, significar ser preconceituosa, ser excludente e cruel.
     O pouco que aprendi sobre este universo devo ao contato com pessoas educadas,  inteligentes,  interessantes, de uma alegria ímpar... e de outros gêneros.  Para ser sincera, seres humanos mais evoluídos. Em algumas circunstâncias,  ouso dizer,  gente bem melhor que nós, os héteros, os "normais".
     Esse contato - é preciso conhecer para amar- é muito importante,  mas não resolve tudo.
  Ainda me pego repetindo palavras, pronunciando expressões  que inserem em si preconceito e exclusão, apesar de o meu coração não compactuar com o que está posto nos seus sentidos, mesmo os mais sutis.
     Com relação a outro tipo de preconceito, quando reflito sobre essas questões,  lembro-me da minha mãe, referindo-se à sua vizinha, dizer:
__ Dona Francisca é uma preta de alma branca! Minha mãe amava a Dona Francisca,  eu não tenho nenhuma dúvida. Eram amigas de uma vida inteira. Plantavam e colhiam, juntas, o que produziam nos quintais, enfrentavam as tarefas mais pesadas, enfim, compartilhavam as agruras e as esperanças de serem mulheres pobres, mães de muitos filhos no interior de São Paulo, há muito, muito tempo.
     Mas ela não era capaz de perceber que a sua afirmação era preconceituosa. Que o seu dizer significava que Dona Francisca tinha que ter algo branco para ser aceita, nem que fosse a alma. Ela, simplesmente não sabia disso. Na verdade, dizer aquelas palavras era, para ela, elogiar a amiga.
     Temos que reconhecer que alguns valores se enraízam em nós ao longo do nosso processo educacional. Que irmos nos civilizando tem sido,  ao longo do tempo, ir aprendendo a classificar,  a separar, a distinguir e a excluir. E que tudo isso perpassa a linguagem.
     Mas percebo e me compadeço e sou solidária com as dores dessas pessoas, com as  limitações que encaram todos os dias para, apenas, ser e viver. Me revolto, sofro com as muitas histórias que já ouvi de violência física, nas ruas, e de violência psicológica dentro das casas. Ou ao contrário. Ou ambas em ambos os espaços.
     É a velha história: empatia. Basta nos colocarmos no lugar do outro. 
     Fiz isso por amorosidade. Porque aprendi, com minha filha, a respeitar  e a valorizar os seus amigos não héteros, que se tornaram meus amigos também. Senti no corpo e na alma, o absurdo da opressão, por exemplo, quando me imaginei recebendo um presente da pessoa que eu amo e que me ama e não podendo levar para casa por conta do embaraço, das explicações a serem dadas ao pai, à mãe, aos irmãos.  Terrível. Receber e ficar com, e usar um presente é básico.  É essencial.  Deveria estar na lista das necessidades primeiras do ser humano como alimentação, vestuário...
     E este se torna um fato banal se o confrontamos com a barbárie estampada na mídia, todos os dias, em todos os lugares.
     Na programação cultural desta minha estadia em SP, a última foi ir à Parada Gay.
     Vi um universo colorido. Vi alegria. O que mais vi foram pessoas  felizes como deveriam ser em outros tempos e em outros espaços. Vi gente que ama cada um à sua maneira, de acordo com a sua condição. Não posso omitir que também vi excessos, como ocorre em quaisquer aglomerações.
     Achei graça de um comentário que ouvi:
__ Gente, tem muito hétero aqui!
     É verdade! Uma mistura. Muita gente caminhando, dançando e cantando atrás dos trios. Mas também muita gente observando. Seriam os héteros observando os demais gêneros. Esperando ver o exótico? Eu mesma me lembro de ter comentado:
__ Ah! Eu vou! Não tenho um evento desses no meu currículo!  Seria um preconceito velado?
     De fato, é um mar de gente vestida a caráter,  maquiagem e vestuário extravagantes que, para quem não tem convívio diário, causa estranhamento.  E é fato que não são roupas usadas no cotidiano. É uma festa! Um dia especial.
     Mas tudo isso é embalagem. É externo.
     Na verdade, o que vi, de fato, são pessoas que querem o mesmo que todos nós queremos: viver!
     Viver em paz!

sábado, 17 de junho de 2017

Mais uma vez...partir.

     Amanheci com o livro "O pequeno príncipe" na mente. É muito citado. Merecidamente. Dele, os trechos mais lembrados, provavelmente, são: "O essencial é invisível aos olhos" e "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."
     Gosto muito dos dois, mas o que mais me retorna à mente, e me impacta nas releituras, além do desenho da serpente, é o diálogo entre o pequeno príncipe e o guarda-chaves, numa estação, com o pequenino sem compreender aqueles trens cheios que se movem em direção opostas, sem conseguir dar sentido à razão pela qual os que estão aqui querem ir pra lá e os que estão lá querem vir pra cá.
     A resposta do guarda - chaves indica a dificuldade que nós, os seres humanos,  temos para nos apaziguarmos com o nosso entorno:
"__ Não estavam contentes onde estavam?
__ Nunca estamos contentes onde estamos."
     Penso nisso porque, mais uma vez, está chegando a hora de ir. Outra partida.
     Mas, diferentemente da constatação do guarda-chaves, estou feliz aqui e estou feliz lá. No meu caso, a dificuldade não é estar bem onde eu estiver. É querer ser duas, é querer viver duas vidas. Estar aqui e lá simultaneamente.
Isso soa quase como ingratidão. Como se eu não reconhecesse as dádivas que tenho recebido.
     Mais ainda. Como se eu não fosse capaz de compreender as muitas vidas que tenho vivido.  Todos os recomeços. Todas as novas chances e oportunidades. E as muitas mulheres que puderam viver em mim e que me coabitam ainda agora.
     Reconheço.  Compreendo. E sou grata.
     Mas sempre queremos mais, não é?
     Na impossibilidade da concretização do desejo, resta-me abençoar este espaço,  este tempo. Bendizer esta minha amada que fica, seguindo a vida. E vislumbrar a chegada.  Já me regozijando com os abraços,  os carinhos e os mimos que me aguardam. E também me preparando para os problemas do cotidiano, aos quais nenhum mortal está imune.
     Num livro que li esses dias: "A vida que vale a pena ser vivida", dos autores Clóvis de Barros Filho e Arthur Meucci, uma constatação é a de que, no final das contas, o único patrimônio  que temos é a soberania de deliberar sobre a vida que queremos viver. Soberania esta tão atacada pela mídia e por outras instâncias que tentam- e muitas vezes conseguem- decidir por nós, inclusive, sem que percebamos.
     Vivemos a ilusão de que fomos nós que escolhemos aquela roupa, aquele trabalho, as férias naquele lugar, a cidade em que moramos, os nossos valores e conceitos, enfim, a vida que vale a pena ser vivida.
     Estou em paz. Escolhi estar aqui e agora como também escolhi partir e estar lá nos próximos dias. 
     Pacificada. 
     Simbora!
     Meu corpo embarca.
     Mas um pedaço do meu coração fica.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Se um homem, um dia...

     Há 41 anos, em 1976, eu estava na oitava série. Era uma menina como todas as outras: crua de vida.
     Não havia, pelo menos no meu universo, o feminismo, ou discursos feministas. Lei Maria da Penha então,  nem em sonhos! Não havia mulheres abusadas por seus parceiros, agredidas, violentadas.
     Essas mulheres, com toda certeza, existiam. Mas eram invisíveis.  Para mim e penso que para a  maioria. A violência era velada, acobertada,  covardemente impune.
     Elas se casavam ouvindo das mães que casamento era pra vida inteira. Que separação era uma vergonha. Que deviam servir a seus maridos e serem obedientes.
     Minha mãe nos  contava das dificuldades com o meu pai e quando a inquiríamos sobre o porquê de não ter se separado, ela dizia que, naquele tempo, mulher separada era tida como prostituta. Era a sua razão. Poderíamos nos questionar sobre seus valores.
     O que sei é que me peguei,  ao longo da vida, agradecendo a Deus por não ter cruzado com homens agressores. Nunca, na minha vida, estive próxima de qualquer intimidação masculina.
     Também sempre imaginei que, se isso tivesse me acontecido, eu já estaria morta. Sei que reagiria. Sei que o enfrentaria. Sou brava! Tenho um instinto de preservação imenso. Acho que não sucumbiria sem reação.
     Acho.
     Mas, só saberíamos, de fato, como reagiríamos a uma situação, se a vivenciássemos .
     Hoje, assistindo ao quadro "Segredos de justiça" no Fantástico,  sobre um caso de violência doméstica, me veio à mente dona Jaci, minha professora de Ciências no colegial.
     Lembrei-me  do modo como ela nos chocava a todas e a todos quando, no meio da aula, interrompia uma atividade ou uma explicação para nos orientar para a vida e,  com o dedo em riste, olhando para nós - as meninas, fixamente, determinava:
__Se um homem, um dia, levantar a mão para vocês, matem! É a única forma que vocês têm de garantir que ele nunca mais vai erguer a mão de novo pra vocês!
     Repito: era chocante!
    Ela era uma mulher grandona. Descendente de japoneses, mas grandona e rechonchuda, no seu jaleco branco, com seus cabelos negros, curtinhos.
     Eu nunca esqueci dona Jaci.
     E a ouvi repetir esse mantra, várias vezes, ao longo da minha vida. Todas as vezes em que ouvi  histórias de violência.
     Teria sido ela própria uma vítima?
     Não é possível saber.
    O fato, como disse, é que não fui posta em nenhuma situação em que pudesse pôr à prova a eficiência do seu ensinamento.
     O que constatei, finalmente, é que vim sentindo uma certa gratidão pela dona Jaci, nesses anos todos. Sem perceber.
     Hoje, essa gratidão aflorou um pouco mais.
     Pelo alerta:
Se um homem, um dia...
   Será que algumas das suas alunas precisaram utilizar seus ensinamentos. Será que os utilizaram ?
     Seria uma pena. Não se pode combater violência com mais violência e acreditar que esta seria uma solução.
     É Lamentável. E triste. 
     Para todos nós, homens e mulheres.
   Para todos os homens que ainda não transcenderam aos enganos das relações e que concebem suas parceiras como seres menores, inferiores, propriedades suas.
     Até quando?