Foram
necessários cinquenta longos anos de vida para que eu pudesse, finalmente,
compreender o sentido do alimento na minha vida e na vida dos meus amados.
Sentidos que eu, com meus gestos e atitudes, ajudei a se consolidarem.
Descobri,
tardiamente, mas ainda em tempo, que o alimento cumpre a função de preservar a
vida que habita nossos corpos; apenas isso. Não pode e não deve ser tomado como
possibilidade de reserva para o futuro que, principalmente na minha infância,
era sempre um futuro incerto com relação às certezas, ou melhor, às dúvidas
sobre se teríamos o que comer no dia seguinte e nos dias que viriam.
Lembro-me
de gestos e de atitudes que foram consequências dessa relação de carência que
vivi. Só agora me dou conta, por exemplo, do absurdo que era eu, com meus
filhos pequenos, comer as sobras das suas papinhas, sem a menor necessidade,
mesmo sem estar com fome. Olho para a mãe que eu fui e me vejo, sempre, esvaziando
seus pratinhos, antes de pô-los na pia. A comida não podia sobrar.
Com
os meus pratos acontecia o mesmo: eu nunca deixava sobras. A ideia de que a
comida era rara, escassa, sagrada e difícil de ser conseguida sobreviveu em
mim, mesmo em dias de fartura e da concreta e completa impossibilidade da sua
falta. Só muito mais velha é que me permiti deixar comida no prato.
Hoje,
quando evito deixar é muito mais porque me preocupa o desperdício e a fome no
mundo que o medo de que ela me falte amanhã.
Sei
que essa dificuldade não terá sido só minha. Olho o mundo e vejo que somos
seres estranhos com relação ao alimento: dividimo-nos em um grupo que está
obeso e um grupo que vivencia a inanição diária. Onde erramos?
Há,
então, além de uma compreensão maior dos significados e dos sentidos que o
alimento teve na minha vida, muita culpa.
Culpa
em relação a mim mesma, por estar sempre com sobrepeso, fazendo do alimento o
caminho para a satisfação de todos os outros desejos. Apenas muito recentemente
aprendi que, se eu estou triste, um caminho é chorar, se eu estou alegre, o
melhor caminho é sorrir e celebrar, e que só quando eu estiver com fome é que o
caminho será comer.
Culpo-me,
também, por ter contribuído com a internalização, em um dos meus filhos,
principalmente, do medo da fome. Um dia, para minha surpresa, ele me contou
que, em algum momento da vida, teve medo de passar fome. E hoje, este meu
lindo, doce e querido filho luta contra a obesidade.
Eu
daria alguns dedinhos meus para voltar e refazer o trajeto. Para construir nele
a certeza de que ele nunca passará fome na vida. Sei que essa certeza
consciente ele tem; mas, lá no fundo, será que ainda persiste esse medo primário?
Sei
que esses processos não são de nosso domínio completo; são, na maioria das
vezes, inconscientes, e demoramos muito para nos darmos conta de que eles nos
habitam e nos governam. Para o bem e para o mal.
Concebo
este texto, então, como um pedido de perdão a ele, com a esperança de que o
liberte dos sentidos inconscientes do alimento na sua vida.
Concebo-o,
também, como um desejo de que as pessoas que enfrentam esses dramas consigam enfrentar
a tarefa árdua que é o processo de reeducação alimentar, a atividade física e a
reconstrução da relação com o alimento e, enfim, com o mundo.
E
que a aprendizagem lhes possibilite a compreensão de que o nosso corpo é a
morada da nossa alma e que, por isso, é sagrado. Merece a nossa total
amorosidade. Merece muito cuidado e muita compaixão. Merece nossa temperança, a
virtude que nos ensina a medida de tudo.