Eu
demorei muito a ousar escrever este texto. Aguardava me sentir preparada para
contar a vocês esta história que algumas poucas pessoas já conhecem, dentre as
quais: minhas colegas de trabalho Marli Zibetti e Iracema Gabler, meu amigo e
orientando de mestrado Locimar Massalai, minhas irmãs, cunhadas e sobrinhas,
algumas queridas amigas - ex- alunas do curso de Letras - numa conversa boa, no
aeroporto de Brasília, chorando juntas.
Também
aguardava uma compreensão melhor do vivido.
Não
me sinto preparada ainda, mas penso que não me sentirei nunca. Por isso conto-a
agora.
Conto-a
porque penso que é uma bela história, porque acredito que ela poderá inspirar
pessoas a dizerem o que sentem, enquanto há tempo e porque sou grata a Deus por
ter me permitido experienciar aquela conversa, naquele tempo e naquele espaço.
Também
porque a sua ocorrência permanece um mistério: me pego, às vezes, me
perguntando o porquê; sei que, na minha incompletude e na minha
imperfeição, não era merecedora de
tamanha dádiva, de tamanho milagre. Por que Deus me deu este presente?
Minha
mãe estava se perdendo de si, minha irmã caçula me alertou. Havia falado com
ela, por telefone, no domingo, dia 21 de julho de 2013, e ela, minha mãe, aos
89 anos de idade, não a reconhecera.
Na
segunda-feira, de manhã, liguei.
Ela
me atendeu. Em princípio, uma voz muito fraca:
__
Alô? Mãe?
__
Oi, minha filha?
__
Como é que a senhora está?
__
Não estou bem não, minha filha. O remédio para o inchaço não está mais fazendo
efeito. Acho que eu estou findando.
Dizer
o quê?
Quando
vi, sem saber como ou por qual razão, eu me peguei lhe dizendo as seguintes
palavras:
__
Mãe, nosso corpo tem validade. Vai, aos poucos, falindo. É possível que eu, aos
50 anos de idade, morra antes que a senhora, mas o mais provável é o contrário.
Veja a vida difícil que a senhora levou.
Minha
mãe pariu quinze filhos em casa, de parto normal; trabalhou na roça uma vida
inteira; cozinhou em fogão à lenha; passou roupas com ferro em brasa; lavrou a
terra, plantou, colheu e cozeu os alimentos uma vida inteira.
Vida
dura.
Lembro-me
dela me contando que, em algumas ocasiões, tinha apenas um vestido; então, molhava-se
com a chuva na roça e, chegando em casa, secava o vestido, à beira do fogão de
lenha.
Lembro-me
dessa dentre tantas outras histórias que ainda escreverei sobre ela. Quero
registrar para não me esquecer, para os filhos dos meus filhos saberem quem são
e de onde vêm.
E
continuei:
__
Mãe, não há muito que possa ser feito. Mas a senhora pode olhar o passado com
gratidão; olhar para os acertos e se gratificar, olhar para os erros e se
perdoar por eles, dizer o que ainda pode e deve ser dito.
E
continuei:
__
De minha parte, peço perdão pela filha que eu não pude ser para a senhora e a
perdoo também pela mãe que a senhora não pôde ser para mim.
E
ela:
__
Eu também te perdoo, minha filha.
__
Eu te amo, mãe.
__
Eu te amo, minha filha.
Choramos.
E
então, a voz que eu passei a ouvir não era mais a voz de uma senhora doente;
era a voz daquela mulherona que ela foi, forte, trabalhadora, em atividade
constante. Era a voz que eu ouvi uma vida inteira, na sua inteireza.
A
partir daí, ela foi nomeando, um a um, todos da família que vivem em Rondônia e
enviando bênçãos, sem esquecer nenhum nome.
Disse:
__
Eu ainda vou ver as minhas filhas entrando felizes na minha casa.
E
eu:
__
Vai sim, mãe, vai sim.
Reclamou
de um dos filhos, que há muito vinha lhe dizendo “palavras duras”. Contou que
fazia de conta que não era com ela.
E
disse:
__
Eu queria ouvir suas palavras. Eu sei, eu conheço as suas palavras, minha
filha.
E
nos despedimos.
Na
terça-feira, pela manhã, houve reunião do meu departamento, na universidade, e
eu pedi adiantamento das minhas férias.
Na
terça-feira, à noite, eu comprei uma passagem para Lins.
Na
quarta-feira pela manhã, minha mãe faleceu.
Só
então me dei conta de que nós tínhamos, de fato, nos despedido.
Soube
depois que ela comentara com um dos meus irmãos:
__
Neusa falou comigo se despedindo! Ela tá pensando que eu vou morrer! Eu não vou
morrer não!
Choro
ainda agora, ao escrever este texto. Chorarei muitas vezes, agradecendo a Deus
pela oportunidade rara, questionando o porquê daquela conversa e aquietando meu
coração para o fato de que nem sempre temos as respostas e que não são elas as
mais importantes nesses momentos.
A
minha última conversa com minha mãe permanece um mistério para mim. Mas está
tudo certo.
Dedico
este texto a todos os meus irmãos, a toda a família, entendendo que fui apenas
um instrumento para que ela se despedisse de todos nós.
Graças.
Belo texto professora Neusa!
ResponderExcluirNão parecia que eu estava lendo-o, mas sim escutando-a.
Abraço.
Saudades de você. Sucesso, minha querida!
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