quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Minha última conversa com minha mãe

Eu demorei muito a ousar escrever este texto. Aguardava me sentir preparada para contar a vocês esta história que algumas poucas pessoas já conhecem, dentre as quais: minhas colegas de trabalho Marli Zibetti e Iracema Gabler, meu amigo e orientando de mestrado Locimar Massalai, minhas irmãs, cunhadas e sobrinhas, algumas queridas amigas - ex- alunas do curso de Letras - numa conversa boa, no aeroporto de Brasília, chorando juntas.
Também aguardava uma compreensão melhor do vivido.
Não me sinto preparada ainda, mas penso que não me sentirei nunca. Por isso conto-a agora.
Conto-a porque penso que é uma bela história, porque acredito que ela poderá inspirar pessoas a dizerem o que sentem, enquanto há tempo e porque sou grata a Deus por ter me permitido experienciar aquela conversa, naquele tempo e naquele espaço.
Também porque a sua ocorrência permanece um mistério: me pego, às vezes, me perguntando o porquê; sei que, na minha incompletude e na minha imperfeição,  não era merecedora de tamanha dádiva, de tamanho milagre. Por que Deus me deu este presente?
Minha mãe estava se perdendo de si, minha irmã caçula me alertou. Havia falado com ela, por telefone, no domingo, dia 21 de julho de 2013, e ela, minha mãe, aos 89 anos de idade, não a reconhecera.
Na segunda-feira, de manhã, liguei.
Ela me atendeu. Em princípio, uma voz muito fraca:
__ Alô? Mãe?
__ Oi, minha filha?
__ Como é que a senhora está?
__ Não estou bem não, minha filha. O remédio para o inchaço não está mais fazendo efeito. Acho que eu estou findando.
Dizer o quê?
Quando vi, sem saber como ou por qual razão, eu me peguei lhe dizendo as seguintes palavras:
__ Mãe, nosso corpo tem validade. Vai, aos poucos, falindo. É possível que eu, aos 50 anos de idade, morra antes que a senhora, mas o mais provável é o contrário. Veja a vida difícil que a senhora levou.
Minha mãe pariu quinze filhos em casa, de parto normal; trabalhou na roça uma vida inteira; cozinhou em fogão à lenha; passou roupas com ferro em brasa; lavrou a terra, plantou, colheu e cozeu os alimentos uma vida inteira.
Vida dura.
Lembro-me dela me contando que, em algumas ocasiões, tinha apenas um vestido; então, molhava-se com a chuva na roça e, chegando em casa, secava o vestido, à beira do fogão de lenha.
Lembro-me dessa dentre tantas outras histórias que ainda escreverei sobre ela. Quero registrar para não me esquecer, para os filhos dos meus filhos saberem quem são e de onde vêm.
E continuei:
__ Mãe, não há muito que possa ser feito. Mas a senhora pode olhar o passado com gratidão; olhar para os acertos e se gratificar, olhar para os erros e se perdoar por eles, dizer o que ainda pode e deve ser dito.
E continuei:
__ De minha parte, peço perdão pela filha que eu não pude ser para a senhora e a perdoo também pela mãe que a senhora não pôde ser para mim.
E ela:
__ Eu também te perdoo, minha filha.
__ Eu te amo, mãe.
__ Eu te amo, minha filha.
Choramos.
E então, a voz que eu passei a ouvir não era mais a voz de uma senhora doente; era a voz daquela mulherona que ela foi, forte, trabalhadora, em atividade constante. Era a voz que eu ouvi uma vida inteira, na sua inteireza.
A partir daí, ela foi nomeando, um a um, todos da família que vivem em Rondônia e enviando bênçãos, sem esquecer nenhum nome.
Disse:
__ Eu ainda vou ver as minhas filhas entrando felizes na minha casa.
E eu:
__ Vai sim, mãe, vai sim.
Reclamou de um dos filhos, que há muito vinha lhe dizendo “palavras duras”. Contou que fazia de conta que não era com ela.
E disse:
__ Eu queria ouvir suas palavras. Eu sei, eu conheço as suas palavras, minha filha.
E nos despedimos.
Na terça-feira, pela manhã, houve reunião do meu departamento, na universidade, e eu pedi adiantamento das minhas férias.
Na terça-feira, à noite, eu comprei uma passagem para Lins.
Na quarta-feira pela manhã, minha mãe faleceu.
Só então me dei conta de que nós tínhamos, de fato, nos despedido.
Soube depois que ela comentara com um dos meus irmãos:
__ Neusa falou comigo se despedindo! Ela tá pensando que eu vou morrer! Eu não vou morrer não!
Choro ainda agora, ao escrever este texto. Chorarei muitas vezes, agradecendo a Deus pela oportunidade rara, questionando o porquê daquela conversa e aquietando meu coração para o fato de que nem sempre temos as respostas e que não são elas as mais importantes nesses momentos.
A minha última conversa com minha mãe permanece um mistério para mim. Mas está tudo certo.
Dedico este texto a todos os meus irmãos, a toda a família, entendendo que fui apenas um instrumento para que ela se despedisse de todos nós.

Graças.

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