sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Mordendo a língua!


     Contei essa história a alunos meus e fiquei com vontade de registrá-la na escrita.
     Aconteceu comigo e me marcou, como nos marcam certas histórias e vivências da infância, às vezes, sem nem mesmo sabermos por quê.
     Minha família morou em casas tão precárias que nem mereciam o nome de casa. Eram alugadas ou cedidas por amigos ou por patrões do meu pai.
     Não me lembro de todas. Minha mãe nos contava que houve algumas que nem janelas tinham.
     Lembro-me de uma em Lins, na rua Rio Grande do Norte.
  Era, na verdade, um grande galpão que foi dividido em paredes-meias para se transformarem em moradias.
     Minha mãe, nos períodos chuvosos, quando havia tempestades carregadas de relâmpagos, trovões e chuvas muito fortes, acompanhadas de ventania, naquela casa, bastava caírem as primeiras gotas de chuva, nos punha a todos embaixo da mesa.
     Penso que, para ela, aquele local era o mais seguro da casa. Talvez temesse que o teto caísse sobre as nossas cabeças.
     Mas esse não era o seu único gesto esquisito. Sempre que nos punha embaixo da mesa, ela nos mandava mordermos a ponta da língua. Informava-nos que, quando um raio cai e atinge uma pessoa, ela morre sufocada porque a língua enrola e impede a respiração.
     Então, toda vez que ouvíamos um trovão, mordíamos a língua.
     Claro que o seu saber cotidiano deixava escapar o fato de que, quando o trovão retumbava no ar era que o raio já tinha caído antes disso.
     Pois bem. Passados tanto tempo, ainda mordo minha língua.
     Basta começar a chuviscar, basta ouvir um arremedo de trovão ao longe e a minha língua já está devidamente presa por entre os dentes.
     Sei que não é bem assim que funciona.
     Sei também que moro em uma casa que é, de fato, uma casa.
     Sei que estou protegida, segura.
    Mas sei também que este saber ancestral, internalizado ao longo da infância, é muito maior e mais poderoso que qualquer outro saber que a vida tenha me ensinado.
    Por isso, mordo a língua.

Cybercondríacos

     Já vai ficando pra trás o tempo em que convivíamos com pessoas fissuradas nas doenças: seus sintomas, seus riscos, sua possibilidade de cura, os avanços da medicina etc. e que tinham como recursos para saciar sua sede, apenas as bulas, os farmacêuticos, um médico mais próximo, uma enfermeira com a qual tivesse feito amizade na última internação e as revistas especializadas − os chamados hipocondríacos.
     Todo hipocondríaco que se preze, é capaz de sentir os sintomas de uma dada doença, só de ouvir os relatos sobre a mesma. Também é capaz de administrar remédios com propriedade. Se você perguntar a ele se conhece um remédio para tal doença, ele lhe dirá o nome de dez, pelo menos, com informações completas sobre o preço, as reações adversas, a composição e o modo de ingestão, dentre outros.
     Hoje, com o desenvolvimento tecnológico que possibilitou esta rede chamada Internet, vimos surgir uma nova tribo: os cybercondríacos. São exatamente iguais aos hipocondríacos, com uma única distinção: não precisam mais ficar horas em farmácias, conversando com balconistas e farmacêuticos; suas informações são cooptadas na Internet, com muito mais fidelidade e autenticidade.
     Eles são, atualmente, o terror dos médicos. Especialmente daqueles que se sentiam os donos do saber, com superpoderes sobre a vida e a morte de seus pacientes.
     Devo confessar que eu fazia parte do grupo dos hipocondríacos desde sempre.
     Mas só descobri que havia me transformado numa cybercondríaca alertada por uma amiga que é professora do curso de Medicina e que me mostrou uma reportagem na revista Época − cujo título por si só já nos denuncia: Doutor Google − sobre esta nova maneira de ter mania de doença.
     Um cybercondríaco vai ao médico apenas para confirmar o que ele já sabe. Para ter certeza de que está, de fato, tomando a melhor medicação para o caso, e nas doses apropriadas.
     Vivi duas cenas que mostram como os médicos têm lidado com a questão.
     Desconfiada de que uma certa vermelhidão na perna fosse sintoma de uma erisipela, fui buscar na rede todas as informações disponíveis sobre a doença.
     Pra ser fiel à minha hipocondria, já fui me medicando logo.
     Quando cheguei à consulta e disse à dermatologista que achava que estava com erisipela porque os sintomas...
     As reticências acima servem para indicar o que, de fato, aconteceu. Ela me interrompeu, dizendo que não precisava que paciente seu viesse ao consultório lhe explicar o que era erisipela. Surpresa com a insegurança da médica, eu lhe disse que não queria ensinar nada não, que aquela era apenas uma introdução para a minha fala.
     Claro que a reação da médica mostrou mais dela do que ela própria poderia supor.
     Decidi, então, consultar uma outra dermatologista.
     Esta, ao ouvir o meu diagnóstico, educada e gentil, me perguntou o que é que eu sabia sobre a erisipela. Ao ouvir meu relato sobre a doença, mostrando-se satisfeita, disse que eu, então, sabia da seriedade da doença, examinou o local, reviu dados de consultas anteriores minhas e passou a me orientar sobre o que fazer, a partir das informações que eu dei sobre o que já tinha ingerido de medicação.
     O interessante é observar as duas reações, opostas.
     E achar graça de uma classe que se vê obrigada a repensar o seu papel de detentor de um saber que agora, graças à Internet, passa a ser acessado por milhares de pessoas.
     Claro que nunca teremos o saber teórico, técnico e prático dos médicos e isso é bom. Mas poder ter acesso a informações especializadas que nos confortem, que nos esclareçam e que até nos alertem para um possível erro de diagnóstico é ótimo.
     Santa Internet!  

Palavras curadoras

     A vida se refaz. Deus, pai de extrema bondade, ou, se preferirmos, a entidade que nos governa, a luz, nossos tantos deuses ou como quer que os nomeemos, nos possibilitam recomeços, sempre.
     O problema é que, em momentos de caos, não dá pra acreditar nessa premissa. Não é possível nem mesmo imaginar que haverá uma única saída para nossos dramas, medos e dores.
     É como se estivéssemos no olho de um furacão, sendo levados, sem controle e sem domínio das nossas ações, das nossas reações e dos sentimentos, quase sempre conflituosos, contraditórios que nos comandam.
     Vivi dias de caos, Quem é que não os viveu.
     Lembro-me de uma manhã em que eu subia, a pé, a avenida Sete de Setembro, chorando de soluçar, com olhos tão enevoados que ficava difícil enxergar a calçada, a guia, a sarjeta e os transeuntes. Apenas lágrimas, passos trôpegos e um buraco na alma que me garantia a impossibilidade de prosseguir.
     Abandono, perda, amor em vão, uma sozinhez de dar dó.
     Era a hora de um milagre. Um daqueles nos quais acredito piamente, que acontecem todos os dias, mas que não os vemos, pois perdemos nossos olhos de ver essas dádivas.
     E aconteceu.
     Uma mulher que vinha na direção oposta, de repente, pára sua caminhada, me pega pelo braço, me segura, ao mesmo tempo, com delicadeza e determinação.
     Eu a vi, com certeza. Não sou capaz de descrevê-la. Depois de tantos anos, sua imagem se perdeu. Mas o seu gesto foi fundamental naquele momento.
     Ela me olhou nos olhos e me disse: “Minha filha, tenha fé, viu, tenha fé. Deus é um pai de extrema bondade. Vai passar. Vai passar!”.
     E se foi.
     O fato é que aquelas palavras foram ditas no momento certo e me calaram um pouco as dores e as mágoas.
     Os passos seguintes já foram mais leves.
     Sobrevivi à tormenta. Vieram outras. Tantas outras. Elas sempre vêm. Sobrevivi a todas. E de todas saí melhor.
      Ao longo da vida, sempre que encontrei uma aluna, uma amiga, uma irmã, atormentadas, com problemas, querendo abandonar um curso, o casamento, a vida, eu me lembrei dessa mulher e repeti suas poucas palavras, tentando causar um efeito idêntico ao que ela causou em mim.
      Palavras curadoras.
     E digo: “Vai passar, minha querida, vai passar, você vai ver, a cada dia você se sentirá melhor e melhor. Deus é um pai de extrema bondade e permite que a vida se refaça!”.
     Lembro-me desse episódio hoje e não é à toa essa lembrança. Estou saindo de mais uma tormenta. Como nas outras, também achei que não conseguiria, que não daria conta. E mais uma vez, me apoiei nessa desconhecida que me fez um bem enorme, sem saber que o fazia.
     Na verdade, acho que ela me disse muitas vezes aquela frase e desta vez, me disse de novo.
     E eu estou aqui, recomeçando, como fênix, renascendo das cinzas.
     Estranha mulher. Abençoada mulher. Benditas foram as suas palavras.
     Que a sua vida esteja sendo leve, firme, repleta de amorosidade como as palavras que você me disse naquela manhã tão distante, na subidinha da avenida sete de setembro. 
     Palavras abençoadas.
     De uma desconhecida.

Olhos de ver


É uma manhã ensolarada de janeiro, numa cidadezinha do interior do estado de São Paulo.

O grupo faz os últimos preparativos para a jornada do dia.

__ Os lanches estão prontos!

__ E a garrafa de água?

__ Eu já peguei o repelente.

__ Por favor, lembrem-se dos chapéus. E passem já o protetor solar!

Está última, é claro, é fala de mãe.

O carro, já marcado pelas estradas do tempo, parece ceder frente ao peso que lhe impõem no bagageiro.

Quando todos se instalam nos seus devidos assentos, ele solta um gemido.

No banco do motorista, um jovem de descendência japonesa, amigo de infância.

A cidadezinha de Inúbia Paulista havia recebido migrantes japoneses há muitos, muitos anos. Os que lá chegaram crianças ainda, estão hoje na casa dos oitenta, noventa anos.

O Kimi – este é o nome do motorista – perdera o pai migrante, anos antes. A mãe, velhinha, ainda vive, com os filhos, na terra que a acolheu.

No carro, ao lado do motorista, o Pedro. O guia da trupe.

É preciso dizer que ele é o único que conhece o caminho. Estão todos à mercê do seu saber e do seu senso de direção.

No banco de trás, mais pessoas do que os órgãos responsáveis pelo transito autorizariam. Superlotação.

Não é irresponsabilidade, é hábito.

No interior, pouco tráfego, estradazinhas tranquilas não indicam perigo algum.

No caminho, Pedro é o chefe, o guia com poder supremo.

__ Quando chegar numa árvore enorme, à direita, na encruzilhada, vire à esquerda.

__ Está demorando! Parece longe! Mais longe do que eu imaginava.

__ Tem árvore mesmo?

__ Fiquem tranqüilos. O “papai” aqui sabe o caminho.

__ Olha lá a árvore!!

__ Então, agora vamos passar pelo sítio do Seu Mané. Daqui uns dez, quinze minutos.

Lá vamos ter que parar. Alguém desce, abre a cancela para seguirmos em frente. Depois precisa fechar.

Seu Mané sabe que esse é o melhor caminho para a ida e não se importa. Podemos atravessar o sítio dele.

Curvas, ladeiras, pinguelas, riachos.

A poeirazinha vermelha que se levanta quando o carro passa ou quando cruzam com cavalos e com cavaleiros toma conta da estrada e atrapalha a visão. O jeito é diminuir ainda mais a já debilitada velocidade e aguardar até que o caminho clareie.

Sons de mata, passarinhos, cores e sabores.

Quem mora num grande centro não resiste diante da visão da natureza.

A maioria deles.

Pedem ao Kimi que pare o carro à beira da estrada, pulam a cerca de arame farpado e sobem na goiabeira carregada, que se oferece como dádiva, presente e milagre.

Uma linda manhã de verão.

Com palmeiras e com sabiás.

Mas se pararem todas as vezes que sucumbirem aos encantos do cenário rural, o destino final ficará comprometido.

Por isso, resistem a uma touceira de delicadas flores ali, a uma rama de abóboras que escapam para fora da cerca acolá, a um beija flor mais adiante e seguem.

Finalmente, o destino: o rio aparece, com suas pequenas quedas, com o movimento natural das águas que, sabiamente, contornam os obstáculos formados por pedras e troncos e serpenteia, seguindo seu curso.

Pescaria!!!!

Muito bom o silêncio da espera. As varas de bambu em punho, devidamente preparadas com anzóis e minhocas e lançadas às águas.

São todos pescadores, agora, e ocupam o lugar que, para cada um, é o melhor ponto de pesca.

__ Ai, que nojo! Eu não ponho a mão nesse bicho! Põe no anzol pra mim, tio?

__ Como é que você quer ser pescador, se tem nojo de minhoca?

Risadas.

As piadas de pescador logo começam.

São inevitáveis as lembranças de outras pescarias, as histórias de peixes enormes que não têm, sequer, uma fotografia que comprove a façanha da pesca e que lhes dê legitimidade.

Miguel é o primeiro. Inaugura a pescaria, dando gritinhos e puxando com força a vara que se estica toda, atendendo aos apelos da linha.

__ Aí, tia! Eu sou o maioral!

  Pelo menos dessa vez, não vão ter que comprar peixes na volta para casa para fazer jus ao gelo que espera na caixa de isopor, e para escaparem das gozações dos que ficaram.

O Kimi reclama da gritaria.

__ Vocês me fizeram perder meu primeiro peixe. Estava quase mordendo a isca!, garante ele.

Novamente risadas.

Um fogareiro é improvisado.

Os lanches permanecem nas sacolas, meio esquecidos.

Quem resiste àqueles peixes, fresquinhos, tratados ali mesmo, nas águas do rio, salgados e recheados com uma farinha de mandioca amarelinha e crocante, misturada a tomates picados, cebola e cheiro verde?

Ninguém.

Os peixes são o almoço.

Fim de tarde. Sol se pondo.

Dias felizes passam rápido.

Mas sobrevivem.

Na memória, são eternos.

Na volta, Pedro assume, novamente, sua função de guia.

Agora, sugere um atalho, um outro caminho de volta, mais rápido e mais seguro, por causa da escuridão da noite que se adianta.

__ Esse não passa pelo sítio do Seu Mané. Assim, ninguém terá que descer para abrir e fechar cancela.

As pernas dos pescadores de primeira viagem - possíveis escolhidos para a tarefa – agradecem.

Rostos cansados, avermelhados, prenhes de vida. 

Em casa, contam do dia.

Os peixes, naturalmente, aumentam, em tamanho e em quantidade.

O grupo se desfaz. Kimi diz que a mãe o espera para o jantar.

Tia Marina e o tio Tito conversam na varanda.

Pedro precisa ir pra casa com seu filho Miguel.

A mãe, Leninha, ocupada com as tarefas caseiras, apesar de amar pescarias, desta vez, não foi.

Mas deve estar preocupada e ansiosa, afinal, já é noite.

__ Já quer ir pra casa, Pedro?

__ Já! Vem comigo, Miguel?!

Na manhã seguinte, cedinho, Pedro chega fazendo barulho, acordando todo mundo.

Mas não se demora. Veio só para fazer uma farrinha com os parentes de férias.

Todas as manhãs, nos últimos dias, ele leva um amigo e vizinho para dar uma volta pela cidade. Ele precisa de ar fresco, sair um pouco de casa. Espairecer.

O João, este sue vizinho, passou por momentos difíceis. A A diabetes o levou a amputar uma das pernas, na altura do joelho.

Vai pôr uma prótese; mas, nesses primeiros dias pós cirurgia, ainda em cicatrização, precisa de uma cadeira de rodas, para ter um mínimo de mobilidade.

Pedro é seu guia. Manobra a cadeira de rodas com habilidade.

João vai dizendo para onde seguir, para onde quer ir.

__ Pedro, vira à esquerda aqui. Segue em frente.

__ Cuidado! Tem uma descida!

__ Espera. Vai passar um carro.

Quem os vê pelas ruas de Inúbia, vê, sem dúvidas, uma bela imagem.

Que nos prova a incrível capacidade de superação dos seres humanos, mesmo nas situações mais adversas.

Antoine de Saint-Exupéry estava certo. O essencial é invisível aos olhos.

Pedro é as pernas do seu amigo Miguel.

Miguel é os olhos de Pedro.

Pedro está cego há alguns anos. Também vitima da terrível diabetes.

Mas vê.

Vê como muitos daqueles que enxergam não conseguem ver - quem eram, verdadeiramente, os cegos, naquele carro que seguiu para a pescaria?  

Pedro vê com olhos de ver.

Vê com os olhos do coração.

Eternidade


Estou prestes a completar 50 anos e, apesar de estar um pouco assustada e amedrontada com o que virá, pois vivemos num mundo que ainda não sabe tratar bem os idosos, tenho me permitido, já há algum tempo, me maravilhar com as descobertas desta fase da vida.

As principais, que me estimulam muito, são a percepção de que os problemas diminuem de tamanho, com o passar do tempo; e a constatação, perplexa e com uma certa alegria, de que este não é um tempo só de perdas.

Que tranquilidade me dá quando me deparo com uma dificuldade e não sinto mais tão fortemente aquele frio na espinha, e não passo tantas noites em claro, e não perco imediatamente a paciência nem o humor e me acalmo com a certeza de que, seja o que for, vai passar.

Neste semestre, perdi um parente querido e meu filho sobreviveu a um acidente de carro terrível. Enfrentei estas situações, com as marcas que elas nos deixam, é claro, mas com sabedoria e equilíbrio. Em paz.

É a temperança que chega, devagarinho, se instalando em mim. Essa virtude - tão necessária neste momento em que as relações são tão instantâneas, em que se valoriza o prazer imediato, em que a ode da moda é a felicidade a todo custo, mesmo que seja à custa da infelicidade de outros - é um presente do tempo.

Bom aceitar as rugas e os limites do corpo, cuidando dele, mas sem o afã da beleza ilusória e a alto preço. Doeu ver as bolsas de gordura e de pele se formarem sob minhas pálpebras e ainda dói ver meu corpo ganhar uma forma estranha, não vou negar. Além disso, as letras diminuíram consideravelmente de tamanho e a minha memória me trai quando mais preciso dela. Mas tudo isso é já parte de mim, me constitui.

Bom ter mais tempo e mais espaço para ouvir os outros. Este, mais um presente que a idade nos dá: ouvimos mais e melhor, ouvimos com o corpo e com a alma.

No livro “Vidas a retalho”, apresentei, como uma das razões pelas quais escrevo, a minha crença em que permaneceremos vivos, através da escrita, de que nos perpetuaremos nos que virão, nas pessoas que já amamos, mesmo sem conhecê-las, nas pessoas, mesmo, que nunca conheceremos: os filhos dos filhos dos nosso filhos.

Era uma ideia, um desejo, uma fé.

Agora é verdade.

Vou ser avó. E a imagem que hipotetizei anos a fio e que foi culturalmente construída em mim, em todas nós: a de uma mulher vencida pelo cansaço das batalhas da vida, sem brilho, sem gás, sem projetos; e a imagem estereotipada - coquinho na cabeça, grisalha, xale nas costas, tricô e cadeira de balanço - simplesmente se foi, evaporou-se.

É exatamente o oposto.

Sou tomada por um sentimento de plenitude, de vida que se renova, de recomeço. Amo mais e amo melhor.

Me vejo com este novo ser nos braços e me sinto eterna. Nele, meu filho renasce e eu também.

Eu gosto de gente.

Não me engano. Sei que não há limites para a maldade humana, mas também sei que não há limites para a bondade humana. E me alegro com os exemplos que vejo, todos os dias, de que o bem está vencendo o mal.

Por isso, tenho fé, acredito e me emociono com a chegada de mais um ser humano na terra. Por isso, te espero, meu querido, minha querida, meu amor.

Posso gritar hoje, parafraseando a cena daquele filme tão visto: I am the QUEEN of the world!

Sim. Tenho super poderes. Sou de novo, a menina serelepe, sapeca, inquieta, parecida com mandruvá em terra quente, cheia de expectativas e de desejos. Sou avó!

O pé de jambo

Em janeiro, chove o dia inteiro no norte do Brasil.

Chove todo dia.

Mas o ar continua quente.

Quente e úmido.

O rapaz caminha pela rua encharcada.

Seus passos sabem por onde seguir.

Ele sabe para onde vai.

O bairro, na cidade de Porto Velho, em Rondônia, mudou muito.

Há trinta anos, eram as últimas casas e depois, a floresta amazônica.

Agora, há outros bairros, muitas outras casas obrigando a floresta a recuar.

De longe, avista um velho amigo.

Que bom que ele resistiu ao progresso.


Ouvindo uma voz em especial, dentre outras que se sobrepõem, ela a reconhece e se amedronta, se desespera.

O menino está na ponta do jambeiro que, carregado, oferece seus frutos à molecada ávida da rua.

Ele colhe os frutos e os joga para os amigos que aguardam, do chão, olhando para o alto e dando orientações sobre a localização dos maiores, dos mais maduros.

__ João, desce daí!

__ Eu já te disse que é perigoso!

__ Já te pedi para não subir e para não subir tão alto!

Ele desce, contrariado. Caminham juntos, de volta para casa.

A mãe, má, sem refletir, insiste em continuar a reprimenda.

__ Você não vê que corre riscos. Não é justo. Esses seus amigos gordinhos não agüentam subir no pé de jambo e se aproveitam que você é magrinho e ágil.

Aquela fala da mãe fere sua alma. Fere seu corpo muito mais que qualquer queda do jambeiro feriria.

As lágrimas, grossas, descem pelas bochechas, em turbilhões, na proporção da sua indignação.

__ Você não pode falar assim deles. São meus amigos e eu gosto deles. E eles não têm culpa de serem gordos.

__ Eu não subo no pé de jambo por obrigação. Eu gosto de catar jambo para eles.

A mãe recua, sabe que está errada. Que foi dura, preconceituosa e má.

No ímpeto de proteger o filho da altura do jambeiro, extrapolou e o magoou.

__ Me desculpe! Me perdoe! Você está certo! Eu não tenho o direito de falar assim deles.

__ É que eu morro de medo de você cair lá de cima!


Olhando o jambeiro florido, ainda pode ouvir todas aquelas vozes. Ainda vislumbra aquela cena. Ainda sente o sabor dos melhores jambos que comeu na vida.

Lembra-se dos meninos. Um a um. Do Cecil, do Vinícius, do Luti...

Onde estarão todos eles?

Lembra-se do Ronaldo, o mais velho dentre a molecada da rua, que morava na casa em frente ao pé de jambo e que organizava as brincadeiras.

Saudades!

Foi-se, jovem ainda, numa estúpida imprudência, voltando de uma pescaria, pela estrada já super trafegada por conta da construção das usinas do rio Madeira.

A casa está igual. Apenas com as marcas do tempo.

Será que os pais dele ainda moram lá?

Caminha um pouco mais.

Toca a campainha.

__ Que bom que você chegou!

__ Que saudade!

__ Como foi a viagem?

Entre abraços, beijos e afagos.

Entre falas misturadas – todos têm muito a contar do tempo das ausências.

Ela o observa, amorosa, e o vê, como há muitos anos, no topo do jambeiro.

__ Veja, meu filho, o que eu guardei para você.

Nas mãos, uma tigela cheia de ... jambos... vermelhinhos, carregados de amor.  

Olha o presente que eu ganhei!!!


Sempre que penso nos direitos fundamentais de todos nós, seres humanos, penso além daqueles básicos que estão contemplados em todos os documentos que versam sobre direitos e sobre deveres.
Sempre digo que, se eu ocupasse um cargo que me desse poder, eu tornaria lei, por exemplo, o direito de todos os brasileiros a, pelo menos, uma massagem por semana. As massagens podem salvar vidas: relaxam o corpo e, como consequência, amenizam as dores da alma.
Meu filho mais velho, com sua visão pragmática e seu olhar capitalista, diz que é por isso mesmo que eu nunca vou ocupar qualquer cargo importante, pois isso não é prioridade.

É, acho que ele tem razão. Não há lugar para um governante que veja o mundo e o outro a partir desta perspectiva.

Mas continuo acreditando que, como disse o poeta, a gente não precisa apenas de “comida”; a gente quer e deveria ter, por direito, diversão e arte.

Vivi outro dia uma experiência que me tocou profundamente. Me fez ver que, mesmo reconhecendo certos direitos que não temos tido, há aqueles que se tornaram tão naturais que nem os vemos mais como direitos. Só aqueles que não os têm, os percebem como tal.

Um amigo contava da sua dificuldade de receber presentes e de poder leva-los para casa. Há presentes que contam, por si só, quem os presenteou. Deste modo, um presente denuncia a relação entre as pessoas: a que presenteia e a que recebe o presente.

Ele vive isso por conta da sua opção sexual, por morar com os pais que, ou não sabem, ou não lidam bem com esta situação.

Mesmo contando com humor, em meio a risadas do grupo, não pude evitar de sentir, profundamente, uma certa tristeza que vinha de cada palavra sua.

E ela me doeu na alma.

Eu jamais pensaria que receber um presente e contar ao mundo é um direito e, muito menos, que é um direito violado, um direito que nem todos têm.

Que delícia é contar aos outros do presente que ganhamos. É como se disséssemos: Olha como eu sou amado!!!

Saber de gente que não pode fazer isso me impacta, me magoa, me machuca.

Como mãe, só posso sonhar com um mundo em que nós, pais e mães, desenvolvêssemos uma sensibilidade tão profunda, ao lidarmos com nossos filhos, que as palavras passassem a ser desnecessárias. Que fôssemos capazes de compreender como nossos filhos funcionam no mundo e que tivéssemos uma imensa humanidade que nos ajudasse a ver como eles amam e são amados e aceitássemos, sem menosprezá-los, seu jeito de estar no mundo.

Em outra palavra, sonho com um mundo em que seríamos, todos, compassivos, e não apenas os pais e as mães.

Mas este seria um mundo perfeito. Sei que estou longe de ser essa mãe; sei que estamos, todos, distantes desta humanidade, mas não custa sonhar.

Sonho com a propaganda Outra Maneira - anúncio produzido pelo GLICH – Grupo Liberdade Igualdade e Cidadania Homossexual (Feira de Santana – Bahia) que concorreu ao prêmio Melhores do Ano, em 2006 (e foi a primeira vez que um anúncio sobre sexualidade concorreu) sendo lida, sempre, da segunda forma como foi lida, quando veiculada na mídia televisiva: lida (e vivida) do fim para o começo, com uma voz, de pai ou de mãe, includente, compreensiva, acolhedora e amorosa:

Você tem que mudar

Jamais vou dizer

Isso é normal

Entenda filho

É muita coragem sua

Chegar para mim e falar

Eu sou gay

Precisamos, urgentemente, aprender a ver o mundo de outra maneira, respeitando as diferenças, como sugere o final do anúncio. E nós, que somos pais e mães, precisamos aprender com mais urgência ainda. É pra ontem!!!!