É uma manhã ensolarada de
janeiro, numa cidadezinha do interior do estado de São Paulo.
O grupo faz os últimos
preparativos para a jornada do dia.
__ Os lanches estão prontos!
__ E a garrafa de água?
__ Eu já peguei o repelente.
__ Por favor, lembrem-se dos
chapéus. E passem já o protetor solar!
Está última, é claro, é fala de
mãe.
O carro, já marcado pelas
estradas do tempo, parece ceder frente ao peso que lhe impõem no bagageiro.
Quando todos se instalam nos seus
devidos assentos, ele solta um gemido.
No banco do motorista, um jovem
de descendência japonesa, amigo de infância.
A cidadezinha de Inúbia Paulista
havia recebido migrantes japoneses há muitos, muitos anos. Os que lá chegaram
crianças ainda, estão hoje na casa dos oitenta, noventa anos.
O Kimi – este é o nome do
motorista – perdera o pai migrante, anos antes. A mãe, velhinha, ainda vive,
com os filhos, na terra que a acolheu.
No carro, ao lado do motorista, o
Pedro. O guia da trupe.
É preciso dizer que ele é o único
que conhece o caminho. Estão todos à mercê do seu saber e do seu senso de
direção.
No banco de trás, mais pessoas do
que os órgãos responsáveis pelo transito autorizariam. Superlotação.
Não é irresponsabilidade, é
hábito.
No interior, pouco tráfego,
estradazinhas tranquilas não indicam perigo algum.
No caminho, Pedro é o chefe, o
guia com poder supremo.
__ Quando chegar numa árvore
enorme, à direita, na encruzilhada, vire à esquerda.
__ Está demorando! Parece longe!
Mais longe do que eu imaginava.
__ Tem árvore mesmo?
__ Fiquem tranqüilos. O “papai”
aqui sabe o caminho.
__ Olha lá a árvore!!
__ Então, agora vamos passar pelo
sítio do Seu Mané. Daqui uns dez, quinze minutos.
Lá vamos ter que parar. Alguém
desce, abre a cancela para seguirmos em
frente. Depois precisa
fechar.
Seu Mané sabe que esse é o melhor
caminho para a ida e não se importa. Podemos atravessar o sítio dele.
Curvas, ladeiras, pinguelas,
riachos.
A poeirazinha vermelha que se
levanta quando o carro passa ou quando cruzam com cavalos e com cavaleiros toma
conta da estrada e atrapalha a visão. O jeito é diminuir ainda mais a já
debilitada velocidade e aguardar até que o caminho clareie.
Sons de mata, passarinhos, cores
e sabores.
Quem mora num grande centro não
resiste diante da visão da natureza.
A maioria deles.
Pedem ao Kimi que pare o carro à
beira da estrada, pulam a cerca de arame farpado e sobem na goiabeira
carregada, que se oferece como dádiva, presente e milagre.
Uma linda manhã de verão.
Com palmeiras e com sabiás.
Mas se pararem todas as vezes que
sucumbirem aos encantos do cenário rural, o destino final ficará comprometido.
Por isso, resistem a uma touceira
de delicadas flores ali, a uma rama de abóboras que escapam para fora da cerca
acolá, a um beija flor mais adiante e seguem.
Finalmente, o destino: o rio
aparece, com suas pequenas quedas, com o movimento natural das águas que,
sabiamente, contornam os obstáculos formados por pedras e troncos e serpenteia,
seguindo seu curso.
Pescaria!!!!
Muito bom o silêncio da espera.
As varas de bambu em punho, devidamente preparadas com anzóis e minhocas e
lançadas às águas.
São todos pescadores, agora, e
ocupam o lugar que, para cada um, é o melhor ponto de pesca.
__ Ai, que nojo! Eu não ponho a
mão nesse bicho! Põe no anzol pra mim, tio?
__ Como é que você quer ser
pescador, se tem nojo de minhoca?
Risadas.
As piadas de pescador logo começam.
São inevitáveis as lembranças de
outras pescarias, as histórias de peixes enormes que não têm, sequer, uma
fotografia que comprove a façanha da pesca e que lhes dê legitimidade.
Miguel é o primeiro. Inaugura a
pescaria, dando gritinhos e puxando com força a vara que se estica toda,
atendendo aos apelos da linha.
__ Aí, tia! Eu sou o maioral!
Pelo menos dessa vez, não
vão ter que comprar peixes na volta para casa para fazer jus ao gelo que espera
na caixa de isopor, e para escaparem das gozações dos que ficaram.
O Kimi reclama da gritaria.
__ Vocês me fizeram perder meu
primeiro peixe. Estava quase mordendo a isca!, garante ele.
Novamente risadas.
Um fogareiro é improvisado.
Os lanches permanecem nas
sacolas, meio esquecidos.
Quem resiste àqueles peixes,
fresquinhos, tratados ali mesmo, nas águas do rio, salgados e recheados com uma
farinha de mandioca amarelinha e crocante, misturada a tomates picados, cebola
e cheiro verde?
Ninguém.
Os peixes são o almoço.
Fim de tarde. Sol se pondo.
Dias felizes passam rápido.
Mas sobrevivem.
Na memória, são eternos.
Na volta, Pedro assume,
novamente, sua função de guia.
Agora, sugere um atalho, um outro
caminho de volta, mais rápido e mais seguro, por causa da escuridão da noite
que se adianta.
__ Esse não passa pelo sítio do
Seu Mané. Assim, ninguém terá que descer para abrir e fechar cancela.
As pernas dos pescadores de
primeira viagem - possíveis escolhidos para a tarefa – agradecem.
Rostos cansados, avermelhados,
prenhes de vida.
Em casa, contam do dia.
Os peixes, naturalmente,
aumentam, em tamanho e em quantidade.
O grupo se desfaz. Kimi diz que a
mãe o espera para o jantar.
Tia Marina e o tio Tito conversam
na varanda.
Pedro precisa ir pra casa com seu
filho Miguel.
A mãe, Leninha, ocupada com as
tarefas caseiras, apesar de amar pescarias, desta vez, não foi.
Mas deve estar preocupada e
ansiosa, afinal, já é noite.
__ Já quer ir pra casa, Pedro?
__ Já! Vem comigo, Miguel?!
Na manhã seguinte, cedinho, Pedro
chega fazendo barulho, acordando todo mundo.
Mas não se demora. Veio só para
fazer uma farrinha com os parentes de férias.
Todas as manhãs, nos últimos
dias, ele leva um amigo e vizinho para dar uma volta pela cidade. Ele precisa
de ar fresco, sair um pouco de casa. Espairecer.
O João, este sue vizinho, passou
por momentos difíceis. A A diabetes o levou a amputar uma das pernas, na altura
do joelho.
Vai pôr uma prótese; mas, nesses
primeiros dias pós cirurgia, ainda em cicatrização, precisa de uma cadeira de
rodas, para ter um mínimo de mobilidade.
Pedro é seu guia. Manobra a
cadeira de rodas com habilidade.
João vai dizendo para onde
seguir, para onde quer ir.
__ Pedro, vira à esquerda aqui.
Segue em frente.
__ Cuidado! Tem uma descida!
__ Espera. Vai passar um carro.
Quem os vê pelas ruas de Inúbia,
vê, sem dúvidas, uma bela imagem.
Que nos prova a incrível
capacidade de superação dos seres humanos, mesmo nas situações mais adversas.
Antoine
de Saint-Exupéry estava
certo. O essencial é invisível aos olhos.
Pedro é as pernas do seu amigo
Miguel.
Miguel é os olhos de Pedro.
Pedro está cego há alguns anos.
Também vitima da terrível diabetes.
Mas vê.
Vê como muitos daqueles que
enxergam não conseguem ver - quem eram, verdadeiramente, os cegos, naquele
carro que seguiu para a pescaria?
Pedro vê com olhos de ver.
Vê com os olhos do coração.