Contei essa história a alunos meus e fiquei com vontade de
registrá-la na escrita.
Minha família morou em casas tão precárias que nem mereciam
o nome de casa. Eram alugadas ou cedidas por amigos ou por patrões do meu pai.
Não me lembro de todas. Minha mãe nos contava que houve
algumas que nem janelas tinham.
Lembro-me de uma em Lins, na rua Rio Grande do Norte.
Era, na verdade, um grande galpão que foi dividido em
paredes-meias para se transformarem em moradias.
Minha mãe, nos períodos chuvosos, quando havia tempestades
carregadas de relâmpagos, trovões e chuvas muito fortes, acompanhadas de
ventania, naquela casa, bastava caírem as primeiras gotas de chuva, nos punha a
todos embaixo da mesa.
Penso que, para ela, aquele local era o mais seguro da
casa. Talvez temesse que o teto caísse sobre as nossas cabeças.
Mas esse não era o seu único gesto esquisito. Sempre que
nos punha embaixo da mesa, ela nos mandava mordermos a ponta da língua. Informava-nos
que, quando um raio cai e atinge uma pessoa, ela morre sufocada porque a língua
enrola e impede a respiração.
Então, toda vez que ouvíamos um trovão, mordíamos a língua.
Claro que o seu saber cotidiano deixava escapar o fato de
que, quando o trovão retumbava no ar era que o raio já tinha caído antes disso.
Pois bem. Passados tanto tempo, ainda mordo minha língua.
Basta começar a chuviscar, basta ouvir um arremedo de
trovão ao longe e a minha língua já está devidamente presa por entre os dentes.
Sei que não é bem assim que funciona.
Sei também que moro em uma casa que é, de fato, uma casa.
Sei que estou protegida, segura.
Mas sei também que este saber ancestral, internalizado ao
longo da infância, é muito maior e mais poderoso que qualquer outro saber que a
vida tenha me ensinado.
Por isso, mordo a língua.
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