sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Ondas



    A visão do mar me aquieta, me acalma, me apazigua.
   Talvez porque tenho vivido a minha vida longe do litoral. O fato é que, sempre que eu vejo o mar, tenho a impressão de que é a primeira vez, tal o encantamento. É praxe, eu olho e agradeço:
__ Meu Deus, muito obrigada por me permitir mais uma vez esta visão.
   Perguntei ao meu sobrinho, Júnior, se é assim com ele também. E ele me disse:
__ Tia, eu me acostumei.
   Muito chique se acostumar com o mar. Lembro da minha sobrinha, Taís, feliz por viver em Natal - RN, falar:
__ Eu moro onde as pessoas tiram férias!
   Ambos foram morar em Natal pequeninos ainda.
   Será que eu me acostumaria, se pudesse ficar mais tempo? Ou o mar me seria sempre dádiva, presente e milagre?
   Eu amo o mar. Amo as praias. Amo as ondas batendo na areia, mas amo, principalmente - naquelas praias em que há formações rochosas ao longo da praia, formando uma parede entre o mar e a areia - o movimento das marés, que enchem e esvaziam as piscinas naturais que se formam, cumprindo uma missão infinda.
   A mais linda que já vi, com essas piscinas naturais, é a de Camurupim, no litoral sul do Rio Grande do Norte. Brinco dizendo que, se pudesse ter uma casa na praia, seria, certamente em Camurupim. Talvez numa outra vida!
  A Praia do Forte, na cidade de Natal, também é assim. Estou nela, novamente, mas me parece a primeira vez.
   E olho o ir e vir das ondas, cada vez mais forte, cada vez mais alto. Amo as águas que superam a altura das pedras e se deitam sobre as mesmas, ultrpassando-as, vencendo-as. Mas sou solidária com as que sucumbem e retornam, vencidas; recuam e se levantam para tentar outra vez.
   Amo mesmo o movimento. Sempre o mesmo e sempre único, ímpar. As ondas, sempre as mesmas, paradoxalmente, sempre outras. Como nós, humanos, ao longo da vida. Transformamo-nos e nos mantendo os mesmos, até nosso último momento.
   As piscinas que se enchem e que se esvaziam. As águas que vêm e que vão.
   Imposível não estabelecer relação com os movimentos da vida. Em tempos de plenitude e de multidão,  o coração aquecido. Felicidade, feliz idade. Em tempos de carência e de solidão, a necessidade da reflexão,  da compreensão do percurso, dos equívocos e a retomada.
   Poderia ficar horas, esquecida de todo o restante, a olhar as ondas, a praia, as pedras, o mar; mas tudo tem seu tempo e seu espaço e a vida nos chama.
   Lembro-me do Palomar, personagem de Ítalo Calvino, na praia, observando as ondas se formarem, irem e voltarem e morrerem na areia. Retomo as reflexões que pude fazer ao ler o livro Palomar, já há alguns anos, quando a vida era mar calmo e eu nem sabia que era.
   Eis-me aqui, um pouco Palomar, pensando na vida, nos desafios, na volta para casa e na retomada do cotidiano, com tudo de bom e de desafiador que a vida nos impõe, cotidianamente.    Em tempos de rupturas, impõem-se o medo de não estar fazendo as melhores escolhas, a impotência diante de questões que não me cabe resolver e a certeza de que não há outro caminho, a não ser prosseguir.
   A sensação que nos assalta a todos, de vez em sempre, de ter perdido o chão, de que nos perdemos, de que pisamos areia movediça me toma.  
  Há fases em que as certezas se dissipam e vivenciamos o medo, por conta das vicissitudes, dos imprevistos e dos percalços da vida, ao vislumbrarmos um futuro que já não cabe naquele planejamento tão redondinho que fizemos, no passado.
   O desafio é seguir, sem bússola. Desbravar mares bravios, sem as pedras a formarem paredões a nos protegerem. Não há barreiras suaves a amenizarem o impacto do choque entre nossos corpos frágeis e o imponderável.
   A visão do mar me ajuda. Participa ativamente na reconstrução de quem sou, neste tempo de pausa, e me prepara para o percurso, para o caminho a seguir, na direção de quem quero ser.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Cabelos brancos



   Estou naquele período em que os cabelos embranquecem a olhos vistos e dá um trabalho danado. É preciso pintar ou tonalizar, no máximo, a cada quinze dias; do contrário, lá estão eles, bem visíveis. No meu caso, tenho uma mecha grande bem no alto da testa. É a primeira que se mostra.
   O problema é que há tanto a fazer na vida que penso que pará-la para retocar a raiz tão constantemente é jogar um pouco da vida fora, por nada. Afinal, o tempo passou. A quem, nós mulheres, estamos enganando, ao pintarmos nossos cabelos.
   Sei do machismo que impera nesse universo, porque homem de cabelo branco é charmoso, enquanto mulher de cabelo branco é relaxada. Impossível não lembrar de outros pares: homem de barriguinha saliente é charmoso, enquanto mulher de barriguinha.... Homem, quando falta ao trabalho para levar o filho ao médico, ouve:
__ Que pai amoroso! E, em oposição, a mulher:
__ Ela mistura as estações. Não se organiza. Não sabe separar trabalho de vida pessoal.
   É fogo!
   Voltemos aos cabelos brancos. O fato é que venho desenvolvendo uma campanha para assumir, de vez, meus cabelos brancos. E a batalha começa dentro de casa:
__ De jeito nenhum que eu vou deixar, mãe. Mulher de cabelo branco é horrível!
   O outro:
__ É por causa do preço da tinta? Se for, eu compro pra você. Essa tem resposta:
__ Meu filho, se eu, depois de trabalhar uma vida inteira, não tivesse dinheiro pra comprar uma bisnaga de tinta pra cabelo, eu poderia me matar. Não é isso! É o trabalho que dá!
   Outras batalhas,fora de casa. Recentemente, viajei a trabalho, para Brasília e, na correria dos dias que antecederam a viagem, não pude parar a vida de novo para a tal pintura. Pensei, então, que seria uma boa oportunidade de testar os brancos fora de casa. E embarquei, sem pintar os cabelos.
   Como era um encontro relativo à educação, é claro que meus pares eram, na imensa maioria, mulheres.
   Desde os primeiros eventos, notei que a raiz branca era a primeira a ser vista, a ser olhada, só depois vinha eu. As pessoas olhavam primeiro a raiz, depois me olhavam e me viam.
   Parecia uma entidade. O branco deixou de ser adjetivo e passou a ser substativo. Virou sujeito, com vida própria.
   Algumas mulheres se constrangiam e disfarçavam o constrangimento. Outras, o demonstravam, claramente, com cochichos, com testas franzidas etc.
   Mantive-me firme, na participação das atividades.
   Já na etapa final do encontro, à mesa do café da manhã, sentei-me com professoras que conversavam sobre a nossa sobrecarga de trabalho, como mulheres, em casa e fora dela, e do quanto era aflitivo tentar dar conta de tudo, sem êxito.
   Num dado momento, uma moça muito elegante, sem me olhar, como se falasse de modo geral e não sobre mim especificamente, soltou essa:
__ Gente, tá tão difícil que, às vezes, a gente nem dá conta de pintar o cabelo antes de vir para um evento!
   Ri um pouquinho por dentro, mas continuei participando da conversa como se nada tivesse acontecido e como se meus cabelos estivessem como manda o figurino e saí de lá certa de que há um preço a pagar para vivermos a vida verdadeira da qual falei num dos textos anteriores.
   Mas continuo firme na intenção de ser uma senhora de cabelos brancos. Quem sabe, depois da aposentadoria?

Velhinhos na praia



   Há um texto do escritor Mário Quintana chamado Chapéu violeta. Eu o li no blog http://marioquintanavidaeobra.blogspot.com.br, mas há vários sites que o reproduzem.
   No texto, o autor reflete sobre a forma de nós, as mulheres, lidarmos com nosso corpo, com a beleza, enfim, denunciando que, quanto mais jovem, mais exigente consigo própria a mulher é e menos vê quem e como de fato ela é. A capacidade de se ver sem as pressões do entorno vem com a sabedoria trazida pelo tempo...
   Leiam: “3 anos: ela olha pra si mesma e vê uma rainha. Aos 8 anos: ela olha pra si e vê cinderela. Aos 15 anos: ela olha e vê uma freira horrorosa. Aos 20 anos: ela olha e se vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, decide sair mas... Vai sofrendo... Aos 30 : ela olha pra si mesma e vê muito gorda/ muito magra, muito alta/ muito baixa, muito liso/ muito encaracolado, mas decide que agora não tem tempo pra consertar então vai sair assim mesmo... . Aos 40 : ela se olha.... Vê muito gorda, muito magra, muito alta, muito baixa, muito liso, muito encaracolado, mas diz: pelo menos eu sou uma boa pessoa... E sai mesmo assim... Aos 50 anos: ela olha pra si mesma e se vê como é...sai e vai pra onde ela bem entender... . Aos 60 anos: ela se olha e lembra de todas as pessoas que não podem mais se olhar no espelho...sai de casa e conquista o mundo... Aos 70 anos: ela olha pra si e vê sabedoria, risos, habilidades, sai para o mundo e aproveita a vida... Aos 80 anos: ela não se incomoda mais em se olhar... Põe simplesmente um chapéu violeta e vai se divertir com o mundo... . Talvez devêssemos pôr aquele chapéu violeta mais cedo...”
   Conto-lhes isso porque tem a ver com a história de hoje.
   Estávamos em Camboriú, num tempo que vai relativamente longe. Eu havi comprado um biquini novo e a novidade é que a parte de cima era tomara que caia. Veja só, nunca tinha usado um biquini tomara que caia na vida, mas, já beirando os cinquenta, caí nessa roubada. Talvez porque quem estivesse comigo dissera que ficou bom – filha ou irmã, normalmente – ou talvez porque eu já estivesse perto da compreensão da mulher do chapeú violeta.
   O fato é que fui à praia e lá chegando, não tive coragem de usar a parte de cima do tomara que caia. Usei uma peça antiga, de alças. No fundo, no fundo, eu já sabia que não a usaria, senão, não teria levado um substituto.
   Logo nos primeiros dias, eu vi a cena que me ajudaria durante muito tempo a, na hora da dúvida, não apenas em relação às roupas, mas também em quaisquer circunstâncias, optar pela postura que eu considerasse a mais verdadeira.
   Vinha no sentido contrário, um casal de velhinhos, caminhando na areia, de mãos dadas.
   Seus corpos, marcados pelo inplacável do tempo, estampavam todas as marcas das experiências vividas. Rugas formando camadas que se sobrepunham umas às outras, como marcas deixadas na areia por ondas infindas, umas dobradinhas sobre as outras,formando um riscadinho que cobria todas as partes visíveis dos seus corpos.
   A postura do casal exalava uma altivez e uma dignidade ímpares, enquanto seus corpos   denunciavam, naquele ambiente de exibição de corpos sarados, a realidade da qual muitos tentam fugir. Olhando-os, senti vontade de envelhecer como eles – mas esta será uma outra história.
   A cena chamou-me a atenção mais que qualquer outra porque a mulher estava com um biquini tomara que caia. Seus seios, muito murchinhos – já ouvi os chamarem, quando estão neste estado, de muxibas – acomodavam-se muito próximo ao abdômen e lá o tomara que caia ajeitara-se, encontrando o seu lugar. Mas deixando cair, delicadamente.
   Era belo, simplesmente.
   Voltei me sentindo ridícula. Eu, com tantos pudores, e aquela “senhorinha” senhora de si, altiva, sabendo-se ser como era e aceitando-se.
   Não tive dúvidas. No dia seguinte, estava eu, na praia, com meu biquini tomara que caia.
   Mas fui só uma vez. Ficou claro que ainda não tinha aprendido a lição do Chapéu violeta, mas, a cada dia, me encaminho para a sua perfeita compreensão. Até porque é inevitável. Espero que aconteça, logo. Será uma libertação.
   Ainda vou escrever muito sobre velhice e sobre envelhecimento, já que estou em processo. O próximo texto será sobre os cabelos brancos.           

Envelhecer



   Ando tão assustada com a possibilidade concreta de envelhecer num país que ainda não sabe lidar com os idosos. Vejo tantas cenas de descaso e de abandono que é penoso pensar no que virá.
   Digo, na minha casa, aos meus filhos, a cada vez que saio para as caminhadas, que faço isso por amor a mim, mas também a eles, pois um pai ou uma mãe velhinhos e comprometidos na sua saúde dá muito trabalho. E que sei que, mesmo que eles optem por me abandonar ou me pôr num asilo, mesmo assim, eles irão sofrer, por sentirem culpa. Por isso também me cuido, para garantir a qualidade de vida deles, no futuro.
   Também brinco, às vezes, dizendo a eles que, se a opção for o asilo, tenho esperanças de que minha aposentadoria seja suficiente para me manter, mas que mesmo assim, temo. E peço:
__ De vez em quando, vocês vão lá ver se eu não estou sendo espancada? Eu morro de medo de apanhar!
   Ao que eles retrucam, horrorizados:
__ Ai, mãe, pelo amor de Deus! Nem fala isso!
   Brincadeiras à parte, ou humor negro à parte, gosto sempre de ver velhinhos pelas ruas, assumindo a vida vivida. Acho belo, principalmente quando vejo casais de velhinhos, porque eles me contam que superaram inúmeras dificuldades para permanecerem juntos. De mãos dadas, então, tratando-se amorosamente, é um prazer vê-los.
   Um dia, estávamos na praia também e eu me deparei, no calçadão, com essa cena de que tanto gosto: um casal de velhinhos, limpinhos, bem vestidos, elegantes, com suas mãos enrugadinhas entrelaçadas e caminhando, bem devagar, com a lentidão e a dificuldade característica de corpos que vão falindo com o tempo.
   Não resisti e disse ao Tito:
__ Olha, que lindo!! Sabe que o meu sonho é envelhecer assim?!?
   E ele, que tem um humor sempre presente, me respondeu “na lata”:
__ Ah, é? Desse jeito aí? Encarquilhadinha? Andando assim, curvadinha, devagarinho assim? Ah, tá! Então vai firme! Mas você vai sozinha! Quando você for aquela velhinha, eu vou ser aquele ali, ó.    E apontou um homem, sarado, que passava por nós, correndo, na plenitude do seu corpo jovem.
   Rimos, é claro. De mim, de nós, da vida. E da nossa perplexidade por nos darmos conta de que o porvir é mistério e que não sabemos, nem saberemos, de fato, como será a nossa vida na velhice.