terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Somos pecinhas de Lego

Este título é uma paráfrase da metáfora utilizada pelo autor Reinaldo José Lopes no livro “Os 11 maiores mistérios do universo”, que acabo de ler.
Se, no universo, essas pecinhas não somente se encaixam perfeitamente como se movimentam numa sincronicidade perfeita formando o universo, na nossa vida de simples humanos, elas não se encaixam sempre tão bem assim, e nem sempre quando precisamos ou queremos.
Mas, nas nossas insignificantes e finitas vidas, algumas peças se encaixam com perfeição, felizmente. E há, para alguns sortudos, encaixes felizes que duram uma vida inteira; duram, às vezes, mais vidas, para os que, como eu, acreditam.
Há pecinhas, no entanto, que nunca se ajeitam, por mais que tentemos. Viramos de um lado, de outro, invertemos a posição e até forçamos o encaixe com sensação idêntica à que sentimos quando tentamos montar cubos mágicos: nunca funciona a tentativa, elas não encaixam.
Com essas, nossas relações são sempre atribuladas, imperfeitas, fadadas ao insucesso. Por isso, com muita frequência, desistimos delas e seguimos.
Mas há relações de encaixe que pareciam perfeitas, traziam conforto, segurança, paz, aceitação, amorosidade... tantos sentimentos bons, mas que, sem que saibamos como ou por que se desfazem, se desconectam, se desencaixam.
São esses desencaixes, essas perdas que lamentamos. Creio que quando vivenciamos perdas de algo que o dinheiro pode comprar, não há o que lamentar, mas quando perdemos aquilo que dinheiro algum pode comprar, é sempre o caso de se sentar no chão e chorar. Quem nunca se sentou no chão e chorou?
Há pecinhas cujo desencaixe merece muitas lágrimas, tal como escreveu o poeta hiperbólico Olavo Bilac: “Rios te correrão dos olhos, se chorares!”
Mas alguns dentre esses talvez nem fossem tão perfeitos assim. A gente idealiza relações, vê aquilo que quer ver e aí, o tempo, implacável, nos mostra esses encaixes nua e cruamente.
Por que estou pensando nisso?
É fim de ano, o Natal está chegando. Tempo de repensar a vida, de renascer de algum modo, de retomar caminhos, construir outros novos.
É tempo de planejar um novo presente no desejo de construir um novo passado.
Talvez por isso, eu tenha lido o livro o tempo todo pensando nas peças de Lego. Fui pensando no Lego que venho montando há 52 anos.
Tenho lidado bem com aqueles desencaixes cujo insucesso eu já suspeitava de início. Na vida, a gente perde!!!! É preciso deixar ir. Algumas relações simplesmente não dão certo e está tudo bem.
Que bom que outras dão. Muitas.
 Sou tão grata por encaixes que me iluminam a vida, me dão esperanças infindas, me dão forças para prosseguir.
Encaixes que me fazem sentir grande, importante, preciosa. Gente!
Mas lamento tanto quando encaixes que eu julgava tão perfeitos se desfazem sem explicações plausíveis, me deixando atônita e deixando também vazios que pecinha alguma ocupa. Não tem jeito: não encaixa.
Mas, é dezembro! É Natal!
Não me custa sonhar que essas pecinhas desencaixadas tão importantes na minha vida, magicamente, voltem a compor o meu grande Lego. Nem que seja numa outra vida...
E eu vivencie, outra vez, a sensação de completude, de inteireza, como aquela vivida pelos que acabam de montar o cubo mágico.
Viva!

Touché!

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Sobre criança e linguagem

Minha casa tem uma varanda com um sino de vento. A Letícia ama tocar nele para que emita sons. E ri. Mas ela também gosta muito de apertar o botão que liga o computador, levantar os dois bracinhos para o adulto que estiver com ela e falar:
__ Pópó!
Já sabemos. Pó pó é a Galinha Pintadinha.
O ritual, então, inclui levantá-la do chão, sentar-se com ela no colo e acessar o youtube.
Nele, os vídeos da Galinha Pintadinha primeiro, depois Palavra cantada, Backyardigans, Peppa Pig, Adriana Partimpim etc., até ela dizer com o seu corpinho, que se cansou.
Entre um e outro vídeo, ela indica que deseja mudar, apertando o mouse. É uma graça!
Há alguns dias, ela vem dizendo:
__ Bi, bi!!!
Mas diz tanto para tocar o sino de vento quanto para ver os vídeos no computador.
Então, com toda minha sabedoria sobre linguagem (risos!) eu concluí que Bi, bi é o sino de vento. SINO= BI. Tem um i que se repete. É lógico.
E anunciei para toda a família:
__ A Letícia tá chamando o sino de vento de Bi!!
Mas o fato é que acessamos a sala do computador e a varanda onde fica o sino de vento por uma escada.
Ela nos toma pela mão, sobe e, indo para o sino ou para o computador, repete o mantra:
__ Bi, bi!!!
O Tito, sábio que nem estuda linguagem, vendo-a solicitar a minha mão pela décima vez no mesmo dia (Haja coluna!!) e iniciar a escalada, dizendo Bi, bi para tocar o sino de vento tanto quanto para assistir os vídeos, me esclareceu, para minha total surpresa:
__ Ah! Neusa! Bi não é nem o PC nem o sino! Bi é SUBIR, minha filha!!!
É assim. Simples e fácil. A gente é que complica.



terça-feira, 23 de setembro de 2014

Nossas dores

Rua Retiro, Bairro Tatuapé – SP. Sexta-feira, 19 de setembro de 2014, 16:20h.
Entro no táxi, aos prantos.
O taxista, um senhor moreno, de barba- deve ter sido um moço muito bonito - me diz:
Que horas é o seu voo, Dona Larissa?
Digo:
__ Às 19:40h. Mas é sexta-feira. E essa garoa, essa chuva que começa... Achei melhor não arriscar e preferi ir mais cedo para o aeroporto.
E ele:
__ Fez bem, fez bem!
Mas eu não sou Larissa, sou Neusa. A Larissa é quem chamou o táxi. É minha filha, que estou deixando!
__ E eu chamando a senhora de Larissa! É Neusa, né?
E me surpreende:
__ Olha, a senhora pode chorar, viu. Vá chorando tranquila. Nós vamos devagar, vamos no contra fluxo. Vamos chegar bem.  Pode chorar em paz, sossegada.
E eu, como boa chorona, chorei.
A viagem não foi tão rápida assim como ele previu. Pegamos engarrafamento, trânsito pesado, pelo menos em dois trechos. Cheguei em Congonhas já eram 18:20h. Em São Paulo, é assim: melhor não arriscar.
No caminho, o taxista silenciou por um tempo. Os sons que ouvíamos eram das chamadas da empresa, era ele informando que tinha pego a corrida do Tatuapé, eram outras conversas de outros taxistas etc.
Depois, começou a falar:
__ Eu entendo a senhora. Tá ferida, né?
Confirmei com a cabeça e chorei mais.
__ Também estou ferido. Perdi minha mulher fez um ano agora. Íamos comemorar trinta anos de casados. Não deu tempo.
Ela teve uns miomas, a senhora sabe. Fez quimioterapia. Ficou boa. Cursou outra faculdade. Era estudiosa.
Mas um dia, começou com uma tosse, tomou xarope. Não passava. Era a doença. De volta.
E eu ouvindo, e chorando, já sem saber mais se chorava por mim, pela Lalá, por ele ou por todas as dores do mundo.
E ele continuou:
A senhora sabe que não dormi mais na minha cama. Não consegui. Falei pro meu filho, que é casado:
__ Vocês ocupem o quarto. Troquem a cama e fiquem aí. Fui prum quartinho que tenho lá nos fundos. É pequenininho, mas me cabe.
Contou dos netinhos: dois – um filho do filho e uma filha da filha. Contei da minha netinha também. Falei da imensa saudade.
Nos engarrafamentos, ele pegava o celular e me dava pra eu ver fotos e vídeos. Vi a netinha, toda encapuzada, parecendo a Chapeuzinho Vermelho, tentando dar passinhos apoiada no sofá. Vi o netinho, os filhos, a mulher tão amada.
E ele continuou:
__ Meu namoro foi difícil. Meu sogro disse que não ia entrar negro na família.
Tentou me matar. Foi preso. Na delegacia, ele, o delegado e eu, mas não houve conversa. Repetiu que não queria negro na família. Continuou preso. 
Naquele tempo, não tinha essas leis de agora. Quando foi solto, vieram me avisar que tivesse cuidado. Eu andava atento o tempo todo. Tinha medo.
Mas não teve jeito. Era amor.
Quando ela completou 18 anos, casaram-se. O velho mandou que sumissem.
Mas vieram os netos. A menina, com a cor do avô. O menino, com a cor da avó. E o velho foi se chegando.
Falava sem mágoa. É passado.  Na voz, a sabedoria que o tempo nos dá.
E repetiu, inúmeras vezes. Entre uma frase e outra:
__ Ainda estou ferido.
Eu também. Ainda estou ferida. Mas diante de uma perda como a dele, preciso relativizar minha dor. Vou rever minha loirinha em breve. E ele?


quarta-feira, 30 de julho de 2014

Sobre galos, galinhas e frangos

As pessoas mais jovens desenvolveram outra relação com os animais. Atualmente, com a industrialização, com as leis, há mais proteção, há mais cuidado. Muitos jovens nem se dão conta de que à mesa, há animais, tal o modo como eles chegam a ela.
 Nossa geração mantinha outra relação com os animais. E não era maldade, malvadeza. Quer dizer, havia, sim, malvadeza em certo grau, mas, na maioria das vezes, era a necessidade, o modelo de vida que determinava se e quando eles seriam mortos.
Lembro-me de algumas histórias sobre frangos, galinhas e galos.
Uma vez, meu filho mais velho disse à avó:
__ Olha, vó, os passarinhos! Disse-o ao avistar uma galinha com seus pintinhos ciscando numa rua de Inúbia Paulista.
Outra geração. Devia pensar que os frangos vêm em sacos. E eu assustada. Criado em Porto Velho, uma fazendona ainda àquela época, eu nem sabia que ele não conhecia frango em estado natural.
Outra vez, comprei uma galinha, na porta de casa, de um vendedor que passava com várias penduradas em um cabo de vassoura, ainda vivas.
Eu disse:
__ Eu compro se o senhor matar pra mim. Quando ele assentiu com a cabeça, garantindo a venda, eu disse:
__ Vou lá dentro pegar um prato pro senhor aparar o sangue.
E ele, horrorizado:
__ Não faça isso não, dona. Pelo amor de Deus! É crime! Deus castiga!
Mesmo assim, matou a galinha e aparou o sangue. Mas confesso que fiquei constrangida e com menos apetite naquela manhã.
No fim, penso que Deus, pai de extrema bondade, deve ter outros pecados mais poderosos para julgar.
Minha mãe, exímia matadora de galinhas, contava que nem sempre a matança dava certo. Uma vez, não cortou direito o pescoço da galinha e ela saiu pelo quintal, cacarejando e pulando, ensanguentada.
Que desespero.
Noutra época, eu estava com parentes vindos do interior de São Paulo em casa e pensei se não seria uma boa opção levá-los à feira para eles conhecerem como elas funcionam nestas bandas e eu aproveitaria pra comprar frango caipira: faria uma panelada e os livraria dos bifes de todos os dias.
Na feira, quando já nos aproximávamos da banca que os vendia e eu já me preparando para fazer o pedido – não daqueles já depenados; eu preferia escolher o frango vivo e pedir pra matar na hora – ouvi minha cunhada exclamar, ao ver os frangos já pelados ali expostos:
__ Ai, que nojo!
Simplesmente passei direto pela banca, ignorando-a completamente, e voltei ao bom e tradicional bife dos paulistas.
Como é que eu não antecipei essa aversão e esse nojo que são muito coerentes?
As feiras em São Paulo funcionam de outra maneira, principalmente, com relação à higiene. Por lá, não se vê carnes in natura sendo vendidas. Quem é leitor/a desse blog, e conhece as feiras do sul, em comparação com as nossas, sabe do que eu estou falando.
É que a gente se acostuma. Como escreveu a Marina Colassanti: a gente se acostuma, mas não devia...
Mas a melhor e mais recente história que conheço sobre nós e os galináceos veio da minha irmã, Elenita, que mora em Natal – RN.
Ela me ligou num domingo, cedinho:
__ Neusa, advinha o que eu fiz?!? Matei um galo!!!!
O marido havia perguntado e pedido:
__ Você sabe matar um galo? Se eu trouxer um, você mata?
E ela:
__ Acho que eu sei. Eu já matei galo! E também vi minha mãe matar, várias vezes. É... traz....
Ele trouxe.
E ela continuou:
Você lembra como faz pra talhar o sangue? Porque ao molho pardo é só jogar o sangue na panela, mas como é pra talhar? Eu não quero ao molho pardo, quero o sangue em pedaços.
E eu:
__ Menina, eu nem lembro mais. Faz tanto tempo! Será que é acrescentando vinagre?
E ela:
__ Não, acho que não. Mãe talhava e a gente não tinha acesso a produtos industrializados. Acho que é com água fervente. Vou tentar.
E me ligou de volta:
__ Neusa, é com água fervente. Deu certo!
E terminou de contar a saga do galo.
O galo chegara no dia anterior.
De madrugada, acompanhando o latido do cachorro, ele começou a cantar, anunciando a manhã que vinha chegando, sem a sorte dos galos do João Cabral de Melo Neto, que, lindamente, teceram as minhas e as manhãs de muitos leitores.
Ela, ainda na cama, ouvia o cantar do galo e pedia, já meio compadecida:
__ Ai, não canta não!
Como matar um galo cantor, não é?
Mas matou-o, mesmo assim.
Ela é ótima cozinheira. O galo deve ter ficado uma delícia.
Que me desculpem os amantes e protetores dos animais, mas devo confessar que me deu uma certa vontade de estar lá e de comer um pedaço daquele galo.
Apesar do canto.



quarta-feira, 9 de julho de 2014

Não vai embora não...

As pessoas que amamos se vão. Mais cedo ou mais tarde. É fato.
Partem para estudar, para trabalhar, para viver.  Vão amar outras pessoas. Ou, até mesmo, falecem.
Nós, humanos, somos os únicos seres vivos que nascem sabendo que irão morrer. Mas vivemos como se fôssemos eternos. Inclusive, nos permitimos nos surpreender com a morte.
Quando recebemos uma notícia de falecimento, exclamamos: Fulano? Não acredito?! Não pode ser!!! Morreu? Tão novo?! Justo agora que casou, ou que se formou ou que arranjou um novo emprego... enfim...
A ilusão da eternidade é necessária, é fundamental. Sem ela, a vida pareceria um fardo pesado demais, com a flecha da morte apontada para as nossas cabeças, todo o tempo. Seria insuportável.
Olha a prova da ilusão aí: vejam os verbos que utilizei, na terceira pessoa: nascem, irão... como se eu dissesse eles e não eu!  E a expressão: até mesmo, como se fosse opção e não destino!
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Meu marido, no início do ano, visitou sua mãe, D. Alice. Passou uns quinze dias com ela. Foi ser filho.
Estando lá, utilizou o seu tempo tentando resolver problemas típicos de todas as casas: fez pequenos consertos hidráulicos e elétricos, aparou a grama, limpou e pintou o telhado, comprou armários novos para a cozinha, trocou a pia, coordenou o trabalho de instalação, sempre tentando agradá-la com a cor, com o tamanho e com o formato de tudo. Tinha carta branca e o cartão bancário dela em mãos também.
Sempre que nos falávamos pelo telefone, ele relatava as ações do dia. Estava feliz. E me contava que dizia à mãe, inúmeras vezes:
__ Mãe, a senhora é quem manda. É só a senhora mandar e eu obedeço. E ela ria.
Já nos dias de vir embora, ele, repetindo a frase já dita tantas vezes “Mãe, é só a senhora pedir e eu faço!!”, ouviu-a dizer:
__ Ah é? É só eu pedir que você me atende? Então tá! 
E pediu:
__ Não vai embora não...
Quando ele me contou isso, eu me emocionei e fiquei mesmo penalizada. Que dó!!!
Como mãe, sei muito bem o que é querer que um filho fique mais um pouquinho, mas saber que ele tem que ir.
Desejei, por um instante, mesmo sabendo da impossibilidade de ter meu desejo satisfeito, que ele fosse dois – um pra ficar lá com ela e outro pra voltar pra nós.
Ele retornou e a vida seguiu seu curso.
Recentemente, minha sogra esteve muito doente.
Tivemos, todos, medo de que se desse a sua partida.
Nestes dias difíceis, me vi imaginando-a: sempre de bom humor, com uma carinha sapeca de criança que fez arte e que sabe que fez, o seu jeito serelepe, as piadinhas e as brincadeiras maliciosas e, às vezes, picantes, que gosta de fazer e de contar - ainda vou escrever textos sobre elas.
Enfim, me vi relembrando sua leveza, que tão bem fez e faz a todos os seus amados....
Nesses momentos, me vi repetindo a sua frase:
__ Minha querida D. Alice, não vai embora não...
E ela não foi. Está se recuperando, já, já volta pra casa.
Deus, pai de extrema bondade, desta vez, atendeu os nossos pedidos.  
Que bom!
É verdade que aqueles que amamos se vão. Mais cedo ou mais tarde.
Que seja, sempre, mais tarde!!!
Não custa nada pedir, mesmo na desesperança, aos que amamos:
__ Não vai embora não...

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Sobre a escrita

            Eu sempre gostei de enfrentar os desafios proporcionados pela escrita.
Dizia sempre (é estranho conjugar este verbo no passado!), em sala de aula e provava com um belo testemunho e farta exemplificação que a escrita transforma a vida das pessoas. Das que escrevem. Das que leem.
Infelizmente, muitos de nós somos frutos de uma escola que não nos ensinou que a nossa trajetória neste mundo é importante; ao contrário, ensinou-nos que a nossa história, a história da mulher comum e do homem comum não pode ser escrita. Só os grandes feitos, dos grandes homens merecem ficar para a posteridade.
Por isso, é difícil encontrar, no Ensino Superior, alunos que tragam consigo, ou tenham em casa, na sua arca do tesouro, um texto que tenham escrito aos doze, aos quinze anos de idade. Na escola, eles escreviam, o texto era corrigido, voltava com as marcas de tinta vermelha deixadas pelo professor, era rasgado ou posto dentro de um livro ou de um caderno e, esquecido, se perdia no tempo.
 Quando em sala de aula, dizia aos meus alunos que os textos que eles escrevem são o seu tesouro; que é preciso guardá-los; que, no futuro, será muito bom relê-los e viajar no tempo: Olha a pessoa que eu fui, as minhas aspirações, as minhas aflições, como era diferente o mundo em que eu vivia!
Costumo dizer que textos são presentes. Quando preciso ou quero presentear alguém, dou textos. Sou incapaz de dar um livro a alguém sem uma dedicatória.
Fico feliz ao imaginar, daqui a alguns anos, aquela pessoa abrindo o livro por acaso e revivendo as experiências que compartilhamos, a partir de um pequeno texto que a transporta. Naquele momento, não importará se eu já não estiver mais aqui; magicamente, sei que voltarei. Ela será capaz de ouvir minha voz, de sentir o meu toque, de lembrar se do meu jeito de ser: uma frase que eu costumava dizer, um gesto que me identificava dentre os demais etc. Mesmo se não estivermos mais próximos, mesmo se a vida tiver nos afastado.
Penso que devemos escrever. Sobre tudo. Sobre o que faz sofrer. Sobre o que faz rir. Sobre o sonho, a perda, o grande amor, o incomensurável desamor, a saudade, a solidão, as alegrias do cotidiano...
Por isso, escrevo.
Perpetuo-me neste mundo através da escrita. Meus textos são meus presentes para o mundo. Para aqueles que virão, para aqueles que já amo, mas que nunca verei, como costumo dizer, para os filhos dos filhos dos meus filhos.
          Na verdade, a escrita norteia um processo de conscientização do nosso estar no mundo, de reflexão sobre a trajetória realizada, das falhas, dos equívocos, da descoberta de sentidos outros − presentes dentro de nós, mas desconhecidos − tudo isso me faz, cada vez mais, querer escrever, querer desvendar um mistério que se vai fazendo realidade, a cada palavra, a cada período.
            E nós nos descobrimos outros. E eu me descubro outra.
Há, ainda, um outro processo. É verdade que é preciso conhecer para amar. Meus leitores são ex-alunos, parentes e amigos. Cada vez que os encontro, que conversamos sobre o que eu escrevi, vejo que os meus textos vão além daquilo que significaram, primeiramente, para mim.
Eles desvendam muito mais do que foi posto, do que foi escrito. Vivenciam, também, um processo de descobrimento, de desvendamento de quem são, o que pensam, o que sentem, a partir do sentido, do pensado, do vivido e do contado por mim, nas minhas escritas.
As coincidências entre as histórias, o riso e o choro nos faz mais próximos, nos humanizam e, com isso, melhoram nossa relação. Não há mais uma professora e uma aluna, uma tia ou uma irmã, não há mais as amigas apenas.
O compartilhar do texto nos transforma em pessoas que sofrem, que choram, que riem, que fazem maluquices e que sentem ou sentiram a mesma dor, a mesma solidão, a mesma saudade, a mesma perda. Nos iguala.
           As reações que um texto escrito possibilita vão, quase sempre, além daquilo que o próprio autor pensou.
          De fato, um texto não existe sem que haja um leitor para torná-lo vivo, para interagir nele e com ele e (re) construir significados, sentidos outros, a partir do seu universo, do vivido e sentido.
          Se é assim, e eu acredito que seja, a leitura tem a característica de ser, sempre, única e, ao mesmo tempo, de nos fazer vivenciar emoções semelhantes e de possibilitar uma interlocução que nos leva a tempos e a espaços diversos do nosso.
Outro tipo de reação mostra um pouco a nossa cara: muitos disseram e ainda me dizem que os meus textos são corajosos, que contam histórias impublicáveis, que nunca teriam tal coragem. Parece que somos um povo que não dá conta de assumir o que é. O que não é agradável deve ser empurrado para debaixo do tapete.
Não entendem que não há recuo, que só podemos vislumbrar o passado, do lugar onde estivermos no presente, não percebem que compreender o vivido e interpretar o trajeto nos faz melhores.
As histórias que conto são de pessoas comuns. Por isso, o riso e o choro. Por isso, nós nos sentimos tão iguais. Por isso, os abraços, as confidências.
Estranhos que, após a leitura, se tornam meus velhos amigos, contam-me seus dramas, seus desamores, suas lutas, se aproximam sem medo, sabem que sou feita eles, igualzinha. Não precisam ter medo. Estamos, finalmente, sem máscaras.
Dentre as razões para publicá-las neste blog é que a minha escrita tem características próximas às da oralidade e isso tem aproximado leitores ariscos. Vários deles me contaram que a primeira vez em que leram um livro inteiro foi quando leram o Parceiros de Jornada; sendo assim, se meus escritos aproximam as pessoas da leitura, esta função já justifica todo o resto. 
Continuo, portanto - com alguns intervalos causados pela necessidade do silêncio ou pelos desarranjos que a vida nos impõe, de vez em sempre - apresentando novas velhas histórias – aquelas coisas que quase nunca são contadas – de mulheres e de homens comuns que encontrei e que tenho encontrado ao longo da minha jornada.
São histórias de vida, com acontecimentos que, se não forem postos sob holofotes, correm o risco de se perder, o que é sempre lamentável, já que são os acontecimentos corriqueiros que, de fato, compõem as tramas do nosso cotidiano.
Nestes textos, há fragmentos de vidas, situações vivenciadas em diversas circunstâncias, dentre as quais umas muito felizes, outras mais alegres e divertidas e algumas que representam eventos memoráveis, como nos ensinou Castañeda, no seu livro O lado ativo do infinito, porque são experiências cujo significado transcende o aqui e o agora.
A médica Rachel Naomi Remen, no seu belo livro “Histórias que curam”, diz que
As histórias não são reproduzíveis porque nossas vidas são únicas. É nossa singularidade que nos dá valor e significado. No entanto, contando histórias também aprendemos o que nos faz semelhantes, o que nos liga uns aos outros, o que nos ajuda a transcender o isolamento que nos separa uns dos outros e de nós mesmos. (p.14)
Para a autora,
Todas as histórias são repletas de viezes e singularidades; misturam fatos e significados. Essa é a raiz de seu poder. As histórias nos permitem enxergar algo familiar com novos olhos. Naquele momento nós nos tornamos um convidado na vida de outra pessoa (...). (p.22)
Espero que estas histórias registradas aqui possibilitem essa familiaridade de que nos fala a autora citada, que possibilitem aos leitores rirem, chorarem, refletirem ou lhes traga “uma paz monstra”, como escreveu um leitor.
  



segunda-feira, 14 de abril de 2014

O menino do quarto azul

Estava a pensar: como podemos salvar as pessoas? Talvez tenhamos que nos salvar, antes de tudo.
Se o Amor nos trouxe aqui, por certo há de nos levar pelos caminhos e diminuir as incertezas. O Amor, por certo, salvará o menino do quarto azul.
Vou-lhes contar:
Havia um menino que, certo dia, se perdeu num quarto azul e perdeu a chave da porta; daí em diante, vivia somente em seus sonhos, nos quais não cabia ninguém.
Não percebemos em que momento aconteceu de serem somente o menino e o quarto.
O quarto, o menino e a porta.
Somente o amor, quem sabe, girará a porta e tirará o menino de si para o mundo.
Lembro-me de que, quando ainda vivia fora desse quarto azul, ainda pequeno, ele me seguia. Talvez eu fosse para ele um gigante no tamanho, no amparo e também na beleza, pois ele me seguia pela casa, sempre sorrindo, com seus olhinhos azuis.
Aos poucos, aprendia a caminhar e ainda continuava a me seguir; ia comigo onde quer que eu fosse e sorria e ficava feliz com as pequenas coisas.
Onde andará esse menino?
Porque se perdeu num quarto azul?
Onde estará a chave?
Quem terá a chave?
Como poderei encontrá-la?
Como poderemos devolver o caminho e o sorriso a esse menino do quarto azul?
Poderá esse quarto virar um arco-íris, onde andarão as outras cores. Será que elas têm a chave ou a chave tem as cores?

Quem dera Deus que o quarto se abrisse e esse menino seguisse o seu caminho, retornasse ao arco-íris que aguarda a abertura da porta do quarto do menino azul.

Elenita Santos
31/01/2014

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Os sons do silêncio

Minha filha, antenada com as tecnologias, como a maioria dos jovens, me alerta sempre:

__Mãe, blog tem que ter constância. De vez em quando você abandona seu blog! Você tem tantos textos já escritos, esperando serem publicados. Vai lá, pelo menos uma vez por semana, e posta um deles.

Ela está na rede o tempo inteiro. É Twitter, Faceboook, Whatsapp, Instagram, Skipe e o que mais vier. E eles têm sempre tanto a dizer, submetidos à urgência da vida que clama por ação, por movimento, por plenitude, enfim.

Mas não é assim sempre.  Pelo menos comigo não funciona assim. Não consigo me impor essa obrigação de dizer sempre.

Há, de fato, textos escritos e adormecidos.

Como escreveu o Menalton Braff, textos precisam de “gaveta”. Nós os escrevemos, os deixamos lá por um tempo e depois, voltamos a eles, muito mais leitores que escritores.

Esse distanciamento nos permite melhorá-los, burilá-los, e até mesmo descartá-los ou dar-lhes mais tempo de espera e de amadurecimento.

Às vezes, leio os textos já escritos à espera de publicação e penso que ainda não é chegado o seu tempo ou mesmo que o seu tempo já passou, pois não penso mais daquele modo. Teria que modificá-los, dar-lhes novas cores, colori-los com tons outros, mais ou menos sutis. E eles ficam lá, na gaveta.

Mas a principal razão do meu silenciamento é que, às vezes, ou quase sempre, as palavras não falam, não são o suficiente, não dão conta de expressar o momento vivido, o sentimento, a situação.

E aí, o silêncio fala mais.

É o tempo do recolhimento; de ruminar, refletir, calar e sentir, apenas.

É tempo de ouvir os sons do silêncio, na esperança de que novas palavras cheguem e se assentem, e se organizem, ou mesmo de que as velhas palavras ofereçam possibilidades outras de sentido – e elas sempre oferecem.

É tempo de aguardar que essas palavras possam me ajudar a estabelecer um sentido inteligível ao outro – esse possível leitor, essa possível leitora deste blog – daquilo que, antes delas, eu só saberia expressar via dor, receio, susto, mágoa, revolta, inquietação e perplexidade. Até penso que tudo isso cabe nos textos, mas persigo o encantamento e a amorosidade.

Nestes tempos em que ando chocada e silenciada com tanta maldade, sempre penso que o Criador deveria ter imposto limites para aquilo que um ser humano pode fazer a um outro ser humano.

Vejam só, eu, me dizendo pequenina e sem capacidade sequer de me expressar, mas criticando e querendo consertar a obra Dele! São nossas imperfeições se mostrando nas palavras!

O fato é que as notícias muito ruins que nos chegam nos afetam; as dificuldades do cotidiano nos bloqueiam; os desamores nos calam; há ações que nos surpreendem e que nos deixam indignados, quando não nos roubam o sono e se transformam em pesadelos... Tudo isso me silencia.

Assim, aquieto-me e ouço os sons do silêncio até as palavras voltarem a fazer sentido.

  


  
  

domingo, 16 de março de 2014

Descobertas

Minha netinha Letícia, que completa hoje um ano e dois meses de idade, está descobrindo o mundo.
E iniciou a descoberta com o seu próprio corpo.
Os braços, ela os direciona para a frente, na altura dos ombros e, com as mãos diante dos olhos, segura uma com a outra, bate palmas, movimenta-as em sentido circular com os dedos abertos e ri. Como se tivesse descoberto que a terra é redonda.
Há alguns dias, descobriu que os seus joelhinhos se flexionam. Então, de repente, a vemos dobrar os joelhos repetidas vezes, curtindo a leveza do corpinho que se abaixa e se levanta, num movimento de dança. E ri, como se tivesse descoberto a pólvora.
Agora, ela percebeu que pode ficar nas pontas dos pés. Assim, com algum apoio ou ousando o movimento sem qualquer base que a equilibre, ela se põe nas pontas dos pés. Várias vezes. E ri, como se tivesse descoberto a roda.
E eu, vendo-a nesses deslumbramentos, me encanto, mas também me pergunto:
__ Meu Deus, onde é que eu estava quando os meus filhos fizeram essas descobertas?
E sei a resposta:
__ Estava trabalhando feito maluca, dando aulas de manhã, à tarde e à noite, para garantir-lhes um mínimo de qualidade de vida.
Houve uma época em que – e eu tenho certeza disso – se abrissem uma escola que funcionasse da meia noite às seis da manhã, eu iria trabalhar lá.
E, é claro, nessas reflexões, há culpa, há um sentimento de perda enorme, uma saudade às avessas, um déjà-vu ao contrário: sinto uma saudade enorme daquilo que não tive.
Então, ludicamente, me permito viajar na imaginação. Volto ao passado e os vejo – os meus filhos Thiago, Larissa e Lucas –   descobrindo o mundo. E os vejo flexionando seus joelhinhos e rindo, magicamente.
Fecho os olhos e os vejo na ponta dos pés, sorrindo, encantados com as possibilidades todas que essa máquina maravilhosa chamada corpo lhe possibilita. E eles riem, belamente.
E me perdoo. Sei que as crianças que eles foram ainda há pouco os habitam e sonho com o desejo de que, lendo este texto, eles também se imaginem pequeninos e se vejam sendo olhados por mim e sintam a plenitude do meu amor.
Porque eles sabem, todos, que as minhas escolhas sempre foram norteadas pelo mais puro amor.
Santa Letícia!
O meu amor de avó me faz reencontrar o amor aos meus filhos. Assim, amando-a, cuidando dela, brincando com ela, extasiando-me com suas descobertas, volto a ter filhos pequeninos e revivo minha amorosidade de mãe.

Não é à toa que dizem que a avó é mãe duas vezes ou que é mãe com açúcar.