Eu sempre gostei de
enfrentar os desafios proporcionados pela escrita.
Dizia
sempre (é estranho conjugar este verbo no passado!), em sala de aula e provava
com um belo testemunho e farta exemplificação que a escrita transforma a vida
das pessoas. Das que escrevem. Das que leem.
Infelizmente,
muitos de nós somos frutos de uma escola que não nos ensinou que a nossa
trajetória neste mundo é importante; ao contrário, ensinou-nos que a nossa
história, a história da mulher comum e do homem comum não pode ser escrita. Só
os grandes feitos, dos grandes homens merecem ficar para a
posteridade.
Por
isso, é difícil encontrar, no Ensino Superior, alunos que tragam consigo, ou
tenham em casa, na sua arca do tesouro,
um texto que tenham escrito aos doze, aos quinze anos de idade. Na escola, eles
escreviam, o texto era corrigido, voltava com as marcas de tinta vermelha
deixadas pelo professor, era rasgado ou posto dentro de um livro ou de um
caderno e, esquecido, se perdia no tempo.
Quando em sala de aula, dizia aos meus alunos
que os textos que eles escrevem são o seu tesouro; que é preciso guardá-los;
que, no futuro, será muito bom relê-los e viajar no tempo: Olha a pessoa que eu fui, as minhas aspirações, as minhas aflições,
como era diferente o mundo em que eu vivia!
Costumo
dizer que textos são presentes. Quando preciso ou quero presentear alguém, dou
textos. Sou incapaz de dar um livro a alguém sem uma dedicatória.
Fico
feliz ao imaginar, daqui a alguns anos, aquela pessoa abrindo o livro por acaso
e revivendo as experiências que compartilhamos, a partir de um pequeno texto
que a transporta. Naquele momento, não importará se eu já não estiver mais
aqui; magicamente, sei que voltarei. Ela será capaz de ouvir minha voz, de
sentir o meu toque, de lembrar se do meu jeito de ser: uma frase que eu
costumava dizer, um gesto que me identificava dentre os demais etc. Mesmo se
não estivermos mais próximos, mesmo se a vida tiver nos afastado.
Penso
que devemos escrever. Sobre tudo. Sobre o que faz sofrer. Sobre o que faz rir.
Sobre o sonho, a perda, o grande amor, o incomensurável desamor, a saudade, a
solidão, as alegrias do cotidiano...
Por
isso, escrevo.
Perpetuo-me
neste mundo através da escrita. Meus textos são meus presentes para o mundo.
Para aqueles que virão, para aqueles que já amo, mas que nunca verei, como
costumo dizer, para os filhos dos filhos dos meus filhos.
Na verdade, a escrita norteia
um processo de conscientização do nosso estar no mundo, de reflexão sobre a
trajetória realizada, das falhas, dos equívocos, da descoberta de sentidos
outros − presentes dentro de nós, mas desconhecidos − tudo isso me faz, cada
vez mais, querer escrever, querer desvendar um mistério que se vai fazendo realidade,
a cada palavra, a cada período.
E nós nos descobrimos
outros. E eu me descubro outra.
Há,
ainda, um outro processo. É verdade que é preciso conhecer para amar. Meus
leitores são ex-alunos, parentes e amigos. Cada vez que os encontro, que
conversamos sobre o que eu escrevi, vejo que os meus textos vão além daquilo
que significaram, primeiramente, para mim.
Eles
desvendam muito mais do que foi posto, do que foi escrito. Vivenciam, também,
um processo de descobrimento, de desvendamento de quem são, o que pensam, o que
sentem, a partir do sentido, do pensado, do vivido e do contado por mim, nas
minhas escritas.
As
coincidências entre as histórias, o riso e o choro nos faz mais próximos, nos
humanizam e, com isso, melhoram nossa relação. Não há mais uma professora e uma
aluna, uma tia ou uma irmã, não há mais as amigas apenas.
O
compartilhar do texto nos transforma em pessoas que sofrem, que choram, que
riem, que fazem maluquices e que sentem ou sentiram a mesma dor, a mesma
solidão, a mesma saudade, a mesma perda. Nos iguala.
As reações que um texto
escrito possibilita vão, quase sempre, além daquilo que o próprio autor pensou.
De fato, um texto não existe
sem que haja um leitor para torná-lo vivo, para interagir nele e com ele e (re)
construir significados, sentidos outros, a partir do seu universo, do vivido e
sentido.
Se é assim, e eu acredito
que seja, a leitura tem a característica de ser, sempre, única e, ao mesmo
tempo, de nos fazer vivenciar emoções semelhantes e de possibilitar uma
interlocução que nos leva a tempos e a espaços diversos do nosso.
Outro
tipo de reação mostra um pouco a nossa cara: muitos disseram e ainda me dizem que
os meus textos são corajosos, que contam histórias impublicáveis, que nunca
teriam tal coragem. Parece que somos um povo que não dá conta de assumir o que
é. O que não é agradável deve ser empurrado para debaixo do tapete.
Não
entendem que não há recuo, que só podemos vislumbrar o passado, do lugar onde
estivermos no presente, não percebem que compreender o vivido e interpretar o
trajeto nos faz melhores.
As histórias
que conto são de pessoas comuns. Por isso, o riso e o choro. Por isso, nós nos
sentimos tão iguais. Por isso, os abraços, as confidências.
Estranhos que, após a
leitura, se tornam meus velhos amigos, contam-me seus dramas, seus desamores,
suas lutas, se aproximam sem medo, sabem que sou feita eles, igualzinha. Não
precisam ter medo. Estamos, finalmente, sem máscaras.
Dentre
as razões para publicá-las neste blog é que a minha escrita tem características
próximas às da oralidade e isso tem aproximado leitores ariscos. Vários deles
me contaram que a primeira vez em que leram
um livro inteiro foi quando leram o Parceiros
de Jornada; sendo assim, se meus escritos aproximam as pessoas da leitura,
esta função já justifica todo o resto.
Continuo,
portanto - com alguns intervalos causados pela necessidade do silêncio ou pelos
desarranjos que a vida nos impõe, de vez em sempre - apresentando novas velhas
histórias – aquelas coisas que quase
nunca são contadas – de mulheres e de homens comuns que encontrei e que tenho
encontrado ao longo da minha jornada.
São
histórias de vida, com acontecimentos que, se não forem postos sob holofotes,
correm o risco de se perder, o que é sempre lamentável, já que são os
acontecimentos corriqueiros que, de fato, compõem as tramas do nosso cotidiano.
Nestes
textos, há fragmentos de vidas, situações vivenciadas em diversas
circunstâncias, dentre as quais umas muito felizes, outras mais alegres e
divertidas e algumas que representam eventos memoráveis, como nos ensinou Castañeda,
no seu livro O lado ativo do infinito,
porque são experiências cujo significado transcende o aqui e o agora.
A
médica Rachel Naomi Remen, no seu belo livro “Histórias que curam”, diz que
As histórias não são reproduzíveis
porque nossas vidas são únicas. É nossa singularidade que nos dá valor e
significado. No entanto, contando histórias também aprendemos o que nos faz
semelhantes, o que nos liga uns aos outros, o que nos ajuda a transcender o
isolamento que nos separa uns dos outros e de nós mesmos.
(p.14)
Para
a autora,
Todas as histórias são repletas de
viezes e singularidades; misturam fatos e significados. Essa é a raiz de seu
poder. As histórias nos permitem enxergar algo familiar com novos olhos.
Naquele momento nós nos tornamos um convidado na vida de outra pessoa
(...). (p.22)
Espero
que estas histórias registradas aqui possibilitem essa familiaridade de que nos
fala a autora citada, que possibilitem aos leitores rirem, chorarem, refletirem
ou lhes traga “uma paz monstra”, como escreveu um leitor.