sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Recomeçar...

     Fim de ano. Viagens. Arrumação das gavetas, do guarda roupa... renovação.
     E planos! Quem nunca?
     Na arrumação da bolsa para a viagem, retirando muitos objetos e me perguntando porque os carrego e descobrindo, ao mesmo tempo, porque a bolsa andava pesando tanto, me deparo com um caderninho. Meu filho o chamaria de moleskine. Em tempos digitais, contraditoriamente, amamos moleskine. Ele e eu.
     Folheio-o e me deparo com o seguinte texto, escrito com a minha letra:
     Desafios 2017
     Compreender e vivenciar os sentidos implícitos nos conceitos de impermanência, desapego e temperança.
     Aceitar os ciclos da vida: as chegadas, as partidas.
     Compreender as aversões.
     E, no final, uma citação de Nise da Silveira, que registrei do filme sobre a sua história - Nise o coração da loucura: "Há dez mil modos de ocupar-se da vida e de pertencer à sua época".
     Lendo minhas fraquezas nos meus desejos de progresso pessoal, me vi apegada aos meus filhos, aos meus amados, ao longo de 2017, de 2018 e sempre - zero desapego; revivi as dores das partidas que presenciei ao longo dos anos - total incompetência para absorver e aceitar a impermanência, a finitude; reconheci minhas dificuldades com este outro que me fere, me machuca, que pensa e que age diferentemente de mim - dançou a desejada compreensão das aversões; quanto a aceitar os ciclos da vida?! Só rindo!
     Ah! O ser humano! Senhor!?
     E me lembrei de uma palestra assistida recentemente em que o ministrante nos propôs repensarmos nossa postura ao final de cada ano, questionando o fato de que, no dia primeiro de janeiro, enchemos os pulmões e afirmamos categoricamente:      Este ano será melhor! Este ano eu serei uma pessoa melhor!
     Questionava ele que essas mesmas pessoas são as que lá por meados de novembro, outras bem antes, dizem num sopro, arrastando-se, já sem energia nenhuma: Eu só quero que este ano acabe!
     E exemplificou observando a própria platéia, esvaziada, diferentemente dos primeiros meses do ano, em que fica lotada, e também com quem passa em frente às universidades, no início do ano, enfrentando um trânsito caótico. No final do ano, já se nota o esvaziamento.
     É isso. Vamos sucumbindo, abandonando os planos e as ações, ao longo do ano.
     E qual a mágica que faz com que, exaustos com os amigos secretos, as festas da firma, a perambulação pelas lojas na busca dos presentes, na virada do ano, nos sintamos renovados, cheios de uma nova energia? Então, não era cansaço físico!?
     Assim, defendia ele que a causa desse fenômeno é que humanizamos os processos naturais: a passagem do ano só significa que a terra concluiu mais um giro em torno do sol. Só isso!
     Faria sentido, então, eu fazer nova lista de projetos para o ano vindouro? Na qual, provavelmente, eu só acrescentaria novas metas, mesmo sem ter progredido minimamente nas anteriores?
     Depois de uma palestra dessa, não consigo. Teria vergonha.
     Resta -me compreender que as propostas para o novo ano são as mesmas de 2017, de 2018 e as dos anos passados.
São todas aquelas das quais eu não dei conta. Tudo o que ficou pelo caminho, que não foi concluído, que não foi nem tentado.
     Então, relembro as metas mais antigas que jazem em outras cadernetinhas: aprender a nadar, a andar de bicicleta, uma nova língua;
cuidar melhor da saúde: bingo! Essa eu cumpri.
     É. Este ano não haverá novas listas.
     Desejo a todos que, em 2019 continuem, prossigam, na luta e no embate pela superação, buscando sucesso em todos os projetos arquitetados em 2018, 2017, 2016, 2015, 2014, 2013,... cada qual descobrindo o melhor jeito, a forma mais feliz de "ocupar-se da vida e de pertencer à sua época".
     Feliz ano novo!

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Geração nem nem

     Hoje nos acostumamos a ouvir sobre a geração nem nem - jovens que nem estudam e nem trabalham. Uma tragédia para eles próprios, para sua família e para o país. 
    Descobri que, aos 56 anos, também faço parte de uma geração que também pode ser chamada de nem nem. Resultado do fato de que nós, seres humanos, estamos vivendo bem mais que os nossos antepassados. Essas dúvidas ele nem tiveram.
     Percebi pela primeira vez no metrô. Algumas pessoas me observando ostensivamente, na tentativa de decidir se sou ou não idosa, se me oferecem ou não um assento. Se estou de cabelo solto, de cachinhos, a dúvida inexiste ou, quando ocorre, se resolve logo e eu sigo de pé. Mas quando estou de cabelos presos, com as raízes brancas à mostra, a dúvida sempre se põe e é mais comum que me ofereçam seus lugares. Depois, ao entrar num laboratório, já na porta, uma moça me pergunta o procedimento e me indica uma cadeira. Sou atendida prontamente: uma funcionária colhe meus dados e, apenas quando me indica uma cadeira para aguardar até ser chamada para a retirada de sangue, vejo muitas pessoas aguardando o atendimento que acabei de ter e, algumas, com olhares de insatisfação e de reprovação, a me dizerem que furei a fila. 
     Assim, nem sou velha nem sou nova. 
    Minha netinha resolveu o problema, com sua lógica bastante coerente. De tanto ela me pedir para ir da sala pra cozinha buscar água, pipoca, seus bichinhos de pelúcia, sandália etc. eu reclamei: 
 Letícia, eu não aguento esse ir e vir. Eu sou velha! E ela: 
 Vovó, você não é velha. Você nem tem rachaduras no rosto. E nem tem cabelo branco!!!           Retruquei: 
 Tenho sim. Olha aqui. É que você não percebeu. E mostrei meus pés de galinha, minhas pálpebras flácidas já se arrastando pelo chão e meu bigode chinês. E puxei os cabelos para trás pra ela ver a mecha branca bem no centro da cabeça. 
     Ela insistiu: 
 — Vovó, velho tem todo o cabelo branco! 
Mas no dia em que a minha filha me chamou para conhecer uma amiga da minha idade, inclusive nascida no mesmo mês, minhas poucas certezas se esfacelaram. Ao vê-la, tive vontade de me sentar na calçada e de tomar umas cachaças - que eu nem costumo tomar - tal o meu desencanto. Eu parecia a avó da amiga. 
     Jesus! 
    Nosso corpo é um mapa da nossa existência. Traz nele as marcas das experiências que vivemos, para o bem e para o mal. Assim, com certeza, haverá uma mulher de 56 anos que pareça mais velha que eu. 
     Eu também fico em dúvida. No metrô e em outros ambientes públicos, fico olhando a pessoa, avaliando o seu grau de envelhecimento, comparando-a a mim para descobrir qual de nós tem mais direito de se sentar. E já me aconteceu várias vezes de, ao oferecer o lugar, ouvir uma frase carregada de um certo espanto e reprovação: __ Não! Obrigada! É como se me dissessem: Tá me achando velha/velho é? Pois você é mais velha que eu! 
     Então, mais que a aparência, parece que velhice é estado de espírito. Hoje, um dia depois de completar 56 estou jovem, jovem... praticamente uma menina!

quarta-feira, 4 de julho de 2018

A vida alheia

     Observar o humano na sua diversidade e complexidade. Um hábito. Ponto de ônibus,  ônibus, sala de espera de consultório e de cabeleireiro,  feiras, filas  em geral, seja no banco ou no caixa do supermercado, sala de embarque: ótimos lugares.
     E quando, no ônibus, chega a hora de descer e a história não acabou? Jesus! A gente sai imaginando mil desfechos possíveis, prováveis.
     Não se trata de ser bisbilhoteira! Não é isso. É interesse pelo ser humano, pelas histórias de vida, tão iguais e, ao mesmo tempo, tão únicas e irrepetíveis. Parece até contraditório, mas não é.
     Também contribui para essa habilidade o fato de eu ser mulher. Se um homem e uma mulher vão a uma festa, por exemplo,  na volta,  ao conversarem sobre o evento, a mulher sempre viu mais que o homem e registrou mais acontecimentos. É batata!
     Basta apurar os ouvidos, estabelecer relações entre o que se fala e o gestual corpóreo.
Já me aconteceu de, na volta de um evento, comentar com o meu marido:
__ Você viu que o fulano não estava à vontade? Você observou a discussão entre A e B?      Você percebeu que C nem foi?
     Não. Ele não viu nada!
     Chega um momento em que sabemos mais sobre aquelas pessoas, além do que é dito pela voz e pelo corpo.
     Já tive,  muitas vezes, vontade de interferir, intervir, propor soluções.  Mas me contive, é claro.
     Talvez seja por isso que é sempre muito fácil resolver os problemas dos outros: porque de fora, sem estarmos contaminados pelas emoções,  vemos com mais clareza e objetividade.
Já os nossos problemas,  por mais simples que pareçam ser, que dificuldade!
     Daí que um afastamento é sempre bom para encontrarmos as soluções para os nossos dilemas.
     De longe, é como se peneirássemos nossa vida e a víssemos dividida em duas partes:  o que fica na peneira e tudo o que penetra por seus espaços e passa. Aí resta ponderar e avaliar o que ficou e o que a atravessou.
     Muitas vezes, até peneiramos bem, e nem precisamos do afastamento para isso.
     Erramos na hora de avaliar. E descartamos o que tem valor e mantemos o que seria descartável.
     Há erros passíveis de correção. Acontece com tudo que é menos importante.
Mas, naquilo que é fundamental,  geralmente nossos erros são homéricos,  sem conserto.
     Como saber? Como distinguir o que é acerto daquilo que é erro?
     O tempo.
     Só o tempo.
     Somos capazes de tal percepção apenas de olho no retrovisor, só quando o que se avalia é passado.
     Então, dizemos:
     Ah! Se eu tivesse feito essa escolha!
     Ah! Se eu não tivesse feito essa escolha!
     Ah! Se eu não tivesse falado!
     Ah! Se eu não tivesse calado!
     Ah! Se...
     E a lista dos Ah! Se... não tem fim.
     Como não é possível voltar pra fazer um novo começo,  resta-nos outras escolhas, outras palavras, outros silenciamentos, outros caminhos.
     Pra fazer um novo fim.
     É,  envelhecer é poderoso.
     É ao envelhecer que ganhamos esses outros olhos que veem mais e melhor.
     É ao envelhecer que vemos a nossa vida com a percepção das sutilezas que víamos na vida dos outros.
     Aqueles que observávamos no ponto do ônibus, dentro do ônibus, na sala de espera...
     É ao envelhecer que vemos a vida com olhos de ver!

terça-feira, 26 de junho de 2018

Olha o meu dente!

     Quem leu o livro Parceiros de jornada vai se lembrar de um texto chamado A minha primeira vez, em que eu contei sobre a primeira vez em que eu escovei os dentes. Foi um texto muito lido porque o título sugeria que eu fosse contar outras histórias. Ah! Os leitores e seus conhecimentos prévios e suas hipóteses!
     Pois é.  Continuei firme, ao longo da vida, buscando minimizar os efeitos daquelas privações da infância.
     Agora é o projeto "Velhinha com as pelancas arrastando pelo chão,  mas com sorriso de anúncio de creme dental": um ano e meio de aparelho ortodôntico, retirada dos sisos (já pensou só perder o juízo após os cinquenta anos?), e estou prestes a ir fazer a retirada dos pontos do primeiro implante: reposição de um dente perdido há mais de quarenta anos. É a vida que se renova, que se refaz e nos dá novas oportunidades. Passei uma vida cuidando das pessoas que eu amo. E já estava passando do tempo de cuidar de mim.
     Uns ficam felizes ganhando a Mega Sena acumulada, encontrando um grande amor etc. Eu estou tão feliz com meu dente novo que a vontade é ir escancarando a boca para o primeiro que eu encontrar e falar: Olha o meu dente!
     É claro! Sei o ridículo da situação e me contenho. Mas se você me encontrar e eu não me contiver e repetir essa cena bizarra,  peço - lhe um pouco de compaixão. Só quem passou por essas situações sabe o sentido e o significado que as mesmas adquirem.
     O implante dentário é um tratamento dispendioso,  infelizmente inacessível para muitos brasileiros. O medo é ter que deixar um rim no consultório  (ou os dois e o fígado!)        Poderíamos iniciar outra série:  "Dos procedimentos que os planos de saúde não cobrem" ou " Mais uma tragédia brasileira ".
     O fato é que ainda me falta fazer mais um implante e, depois, vou buscar dar uma harmonizada estética na minha dentição. Nada comparado ao branco artificial - que nos ofusca o olhar - que temos visto nos artistas : para fixar os olhos em algumas daquelas bocas, às vezes, fico com a impressão de que vamos precisar de óculos de sol com proteção máxima.
     Não.       
     Nada disso.    
     Apenas dar um equilíbrio na cor e nos tamanhos, pois, com várias próteses, às vezes feitas por diferentes profissionais,  a visão geral ficou "o samba do crioulo doido". Será algo bem próximo da realidade.
     E depois rezar. Tenho pedido aí mais uns 20 anos de vida ao todo poderoso.  Pra compensar tanto investimento! Será que consigo?

quinta-feira, 29 de março de 2018

O medo nosso de cada voo

     O avião ainda no solo. Mas as portas já  fechadas. Cintos afivelados e poltronas na vertical.
Vem a comissária de bordo à frente para iniciar os procedimentos de orientação. Faz todos aqueles movimentos conhecidos, fala aquela frase desagradável sobre assentos flutuantes - bem que poderia pular essa parte! Que mau gosto!
     O piloto avisa:
__ Atenção!  Portas em automático.
     Preparados estamos todos os passageiros para a decolagem.
     De repente, o avião apaga. Todinho.
     E ouço uma voz de criança à minha frente:
__ Desligou, mãe!? Sem resposta.
     E, em seguida, uma voz adulta, masculina e bizarra,  às minhas costas:
__ Ainda bem que foi na terra! Já imaginou se estivesse no ar?
     Não precisava ter explicitado o que passou pela cabeça de todo mundo,  né?!
     Todos os passageiros em silêncio.
     E o avião se acende num relampejo rápido, mas com tempo suficiente para ouvirmos, de novo, a voz da criança:
__ A energia chegou!?
     E se apagou novamente. Ao que o mesmo pequenino exclama:
__ Tá escuro, mãe!
     É. Está escuro. Fora e dentro de todos nós, seres amedrontados pelas notícias de acidentes aéreos, que vivenciamos, cotidianamente, a seguinte contradição: por um lado, nos gabamos de termos conseguido a proeza de voar. Um feito para uma espécie bípede e sem asas; por outro lado, o constrangimento de não confiarmos tanto assim nessas máquinas voadoras, a despeito das pesquisas todas que nos contam que o avião é o meio de transporte mais seguro do mundo.
     E o avião apagado. E todos nós na escuridão.
     E eu, com meu celular no modo avião, registrando os fatos em tempo real. Sim, meus queridos leitores: este texto para este blog.
     Para passar o tempo?
     Para não ter que pensar?
     Nem sei. Só sei que meu dedinho vai rapidamente achando as letras que vão dando sentido a essa história.
     E o avião se acende de novo. 
     Não sem antes o sinistro passageiro atrás de mim soltar mais uma pérola:
__ É. Tá com defeito mesmo!
     Deve ser engenheiro ou algo parecido para dar tal veredito contrário a todas as nossas esperanças.
     Me lembrei daquela fala daquele político:
__ Porque não te calas?
     É o que eu diria, naquela hora, se tivesse voz. Ao homem. Não ao menino.
     O menino, inocente.
     O homem, sádico.
     E o processo se reinicia.
     E eu tremo um pouco na decolagem que me parece mais demorada, mais barulhenta, mais tudo de incomum com as decolagens que já vi na minha vida inteira.
     Mas o avião sobe.  Ah! O milagre de voarmos,  nós,  humanos tão imperfeitos.
     E eu termino meu texto. Respiro leve. Os ombros não mais contraídos.
     Posso até voltar a sentir aquela felicidade bobinha sentida agorinha a pouco quando vi encerrarem o embarque e perguntei para a comissária se tinham mesmo embarcado todos os passageiros e ela confirmou.
     E ri gostoso.
     E comemorei porque estava só eu na minha série de três apertadas poltronas.
     Com as pernocas já saltitantes de se saberem esticadinhas pelas próximas três horas.
     E por ter a certeza de que, desta vez, eu não desembarcaria com pés inchados e com dor na alma.
     Mas não.
     Nem me estico toda.
     Nem ocupo os espaços livres.
     Espaço?  Quem precisa de mais espaço?
     Fico quietinha no meu canto.
     Estamos voando. 
     Isso é o que importa!
P. S.: Sabe o homem? Roncou a viagem inteira!

terça-feira, 27 de março de 2018

Linda Nalva

     A Internet tem o melhor da humanidade. Mas, infelizmente,  também tem o pior. Dentre o que ela tem de melhor, os reencontros.
     Na minha família,  eu tenho a fama de ser aquela que procura pessoas, que "desenterra defuntos".  E, dependendo de quem eu encontro, sou elogiada ou criticada. 
     Desta vez, foi o inverso. Eu fui achada. Uma moça chamada Lindinalva entra em contato e me pergunta se eu me lembro dela. Me desculpo, informo que não lembro. Então ela diz: Sou a Nalva. Sou sua madrinha.
     Sim, eu me lembro.Não estabeleci relação de pronto entre Lindinalva e Nalva, mas me lembrei assim que ela falou Nalva. Minha mãe me falava dela. E a elogiava. Descubro, pela conversa que segue, que ambas se gostavam muito. Afeto recíproco.
     E me conta de uma menina que eu fui e que eu não sabia. E me fala de um carinho inédito. Tão bom se sentir amada por alguém. Ela está feliz de saber que estou bem. Está feliz de falar comigo. Me presenteia com palavras mágicas, que me aquecem o coração e que me devolvem um pouco de mim. 
     Claro, eu choro.
     Na medida em que vamos contando uma à outra a vida que vivemos, vou me reencontrando com um passado desconhecido e, o mais emocionante,  com uma versão da minha mãe da qual eu não tinha lembranças.
     E ganho dádivas em forma de textos. Ela me escreve: 
     Meu Deus, há quanto tempo! Você era uma menininha, magrinha e um doce de criança.
     Que bom ler isso!
     E depois:
     Eu tinha adoração por sua mãe, apesar de ter tantos afazeres, estava sempre disposta a me ouvir e me aconselhava muito.
     E depois:
   Quero te ver, te abraçar, recordar um tempo que não volta mais, mas que promove as mesmas emoções; parece que estou te vendo, bem magrinha, alta, cabelinhos encaracolados, meio amarelo, e com uma chupeta enorme na boca, parecia um gatinho quando fica procurando carinho,  você era muito meiguinha. 
     Eu não sabia da chupeta!
     Ah! O tempo! 
     Vou espalhando a notícia. Conto para as minhas irmãs, para os meus filhos.  Rimos, Larissa e eu, da comparação com o gatinho. Ela exclama: 
     Tá tudo explicado, mãe! Você já era carente naquela época!
     Conto a ela do livro que estamos escrevendo com as histórias da e sobre a minha mãe. E penso que as suas memórias seriam um ganho para todos nós e para os leitores. Pergunto se não gostaria de registrar por escrito suas lembranças sobre a minha mãe. Digo que não precisa ser naquela hora, que pode ser depois, mas, para minha surpresa, em seguida, ela me envia essa preciosidade: não apenas explicita seu carinho pela minha mãe, mas reflete belamente sobre a condição das mulheres, numa época em que a elas não era dado o direito nem de existirem:
     Falando da dona Umbelina, na minha visão de hoje, uma pessoa íntegra, sensível e extremamente batalhadora, levando em consideração que os tempos eram difíceis, mas, mesmo assim, era mágica, sabia como lidar com a dificuldade de tudo que a rodeava, as crianças, o marido, a casa, enfim.
Só ela não se cansava, trabalhando muito, acordava muito cedo, por volta das 4 horas da manhã, para ir apanhar algodão, em cima de um trator de bóia fria. As crianças maiores cuidavam das menores. 
E assim era como todas as mulheres da época viviam, elas simplesmente não existiam, não tinham uma roupa nova, bonita, um perfume, ou maquiagem, não iam ao cinema, teatro, show, ou coisa parecida, apenas cuidavam dos filhos, marido e da casa. Ela, porém, tinha sempre uma palavra, um gesto de carinho com todos. Incrível como ela estava sempre muito bem humorada, e disposta, gostava muito de dizer como se deveria ser quando me casasse.
Mas logo vocês se mudaram e perdemos o contato. 
Na época, eu não tinha esta visão; era muito jovem, menina ainda, e muito ingênua, tinha uns 13 anos. Resumindo, sou orgulhosa de ter conhecido uma pessoa tão bacana, tão dedicada, uma guerreira, e muito gente fina. Orgulhem - se de sua mãe!
     Linda Nalva! Gratidão! Nesta manhã de segunda feira chuvosa e de solidão, me conta de uma beleza que eu nem desconfiava que a minha infância tinha tido. E de uma madrinha amorosa. E de uma amorosidade que sobreviveu à distância e ao tempo. Um privilégio!  Como sou abençoada!

segunda-feira, 19 de março de 2018

Fragilidades

     A cada ano, a cada mês, a cada dia que passa, vou me sentindo mais frágil.  Envelhecer nos fragiliza? 
     Às vezes, tenho a sensação de que fui feita de açúcar e de que vou desmanchar 
com a chuva ou com quaisquer gotinhas de água. Noutras, perece que a matéria que me constitui é o papel e que serei rasgada, amassada a qualquer momento, ao menor deslize.  
     E ainda há outras ocasiões, a maioria, em que penso que minha base estrutural é a água.  Mais precisamente as lágrimas. 
     Sempre fui chorona.  Choro por tudo. Choro com anúncio de Coca-Cola. Acho que há um lado positivo: não precisei de terapia ao longo da vida, apesar das intempéries e mantive minha sanidade mental mesmo nas situações mais adversas. Mas agora choro mais ainda. E por TUDO mesmo! 
     Outro dia, fomos ao aeroporto receber uma amiga querida de infância que nos presenteou com sua presença nas nossas vidas por alguns dias. 
     No mesmo voo dela, desembarcou uma senhora vinda do exterior, depois de um longo tempo de ausência. Foi o que apurei do que pude ouvir. Ela saiu do desembarque bem antes da minha amiga.         Então eu pude assistir à chegada em todos os seus detalhes. À sua espera, a filha, um genro que ela não conhecia ainda-vi as apresentações - e uma netinha que ela também nunca tinha abraçado.          Os parentes foram vestidos como quem vai a uma festa: roupas elaboradas, salto alto e maquiagem.      
     E havia cartazes e flores. Brega, ridículo e cafona,  diriam os mais críticos. 
Eu não!  Adoro!  Acho lindo! 
     Quando ela atravessou a porta de vidro, correu para os braços dos seus amados. Quando os abraços se repetiram,  demorados, apertados... Quando palavras foram explicitadas numa altura,  digamos, sem censura e sem pudores,  materializando uma saudade imensa, um amor tão ferido pela distância ... claro, eu já estava em prantos.
     Meu marido, espantado. Não sei porque ainda se espanta!
__ Ah! Não acredito que você está chorando!
 __ Estou! E vou chorar mais! Nem adianta questionar! Amo ver reencontros.  Amo ver gente feliz!         Choro mesmo! 
     Será que isso é fraqueza?

A vida é agora!


     Depois de uma longa e ótima viagem,  embarcamos em Natal, há pouco mais de um mês, meu marido, Tito, e eu. Quase no mesmo horário. Ele no portão nove, e eu, no onze. Nos despedimos e ficamos vendo um ao outro, cada um na sua fila. Eu, de volta a Porto Velho. Ele, a caminho de São Paulo e depois, de Bauru e depois, de Inúbia Paulista,  com a incumbência de reformar a casa da mãe.  
     Senti uma peninha de nos separarmos. Podemos chamar de amor. Podemos dizer que é costume. Nos acostumamos um com a presença do outro. Ainda mais nos últimos cinco meses em que, com a aposentadoria dele, passamos a ficar mais tempo juntos, dividindo todos os momentos de tarefas e de lazer. 
     Nos longos primeiros anos de casamento, nos casos em que ambos os cônjuges trabalham, somos mais administradores de uma casa e pais, que marido e mulher. Os filhos crescidos, seguindo suas vidas, possibilitam o reencontro. 
     Por isso,  deu um apertinho no coração, mesmo sabendo que seria um afastamento provisório. 
De lá pra cá, estamos ambos cuidando. Ele,  da casa da mãe e do irmão que precisa de cuidados especiais. 
     Eu, da nossa casa. Muito trabalho nos primeiros dias: a sensação de que a floresta amazônica quis recuperar seu espaço, de tantos bichos e de tanto mato. A umidade da região, potencializada pela época de chuvas, também me ocupou com mofo em, praticamente, tudo. Até o armário das panelas estava mofado. Aquele mofo que parece uma espuma, uma esponja. Um bioma.
     A previsão é de que a reforma lá deve perdurar. A casa será destelhada e o telhado refeito, pois as telhas, com mais de sessenta anos, estão desmanchando. Um antigo salão que carece de aterro, de janelas e de piso também cobrará o seu tempo. E, como sabemos, em reforma, o Jaque é quem manda: já que quebrou aqui, conserta ali; já que rebocou aqui, pinta ali. E todos os problemas da construção ficam visíveis. 
     Nossa comunicação, via whatsapp -santo whatsapp - algumas vezes por dia, é por áudio e por vídeo. Contamos um ao outro o progresso, o andamento e trocamos fotos.
     E a retomada da rotina. No Pilates, as amigas brincam: 
__ Tá sentindo falta, Neusa?
__ Siiim! Na hora de fazer o café, pela manhã. Quando tenho que levar  o lixo pra rua. Quando preciso ir ao supermercado!
     Ah!Ah!Ahhhh!  As tarefas dele!
     E rimos! 
     Também ter a cama de casal toda pra mim. Os controles do ar e da TV, o celular.  E o rosto cheio de creme.
     Mas, brincadeiras à parte, faz falta sim!
     E aí, já na primeira semana, ele começou:
__ Vem pra cá!
__Tito,você é sem noção! Não dá!  O cartão tá gritando de tantas passagens parceladas em até  duas vidas!
     Foi sempre assim: eu, o feijão; ele, o sonho.
     Seria cômico se não fosse trágico. 
    Na última segunda feira,  reencontro, no Pilates, uma querida amiga cujo marido faleceu em janeiro.     Abraços, condolências, rememorações e explicações para o inexplicável. A morte não precisa de justificativas.  
     E lágrimas. 
     Choramos todas. Por ela, por nós mesmas. Pelos que sofrem.
     Perder quem amamos é provação difícil,  é enfrentamento doloroso do vazio. É para os fortes. 
    Contando pra ela que voltei sozinha, que o Tito estava me chamando,  mas que eu não iria porque nem cheguei direito, porque as contas, porque... porque... mil razões para não ir...
    E ela me surpreende:
__ Vai, Neusa. Dá valor pro Tito. Aproveita o seu companheiro. 
     Vou.
    Claro que vou.
    Dane - se o cartão. Que grite à vontade. 
   Vou aproveitar pra rever minha filha. Vou comemorar com os Tezzaris os 92 anos da minha sogra e vou buscar o Tito.
    Obrigada,  minha querida amiga, por,  mesmo estando mergulhada na sua dor, ter a generosidade de me fazer ver que a vida é  agora.
    Que a vida é tão rara!

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Uma boa conversa

      Eu adoro conversar. As pessoas, todas, podem nos contar histórias interessantíssimas.      Basta ter olhos de ver e coração aberto.
     Antigamente,  eu tinha mais oportunidades: havia as filas intermináveis nos bancos; a espera  nos pontos e os longos percursos nos ônibus.
     Hoje,   minha melhor chance são as filas no caixa do supermercado,  mas, por mais demoradas que sejam, nunca há tempo suficiente para uma boa história. 
     Restam os salões de cabeleireiros. Mas eu vou a eles cada vez menos. Na verdade, só nas datas especiais. Ontem foi uma delas.
     No salão,  conheço Dona Áurea: magérrima, cabelo curtinho,  todo branco; um vestido tubinho que a deixa ainda mais fininha - hoje falam sim; jóias classudas no pescoço, nos dedos e nas orelhas; uma certa dificuldade de locomoção - usa uma bengala que não lhe tira o charme.
     Ao vê-la se ajeitando na cadeira, com a ajuda da manicure, fico pensando que não seria mal me tornar uma velhinha como ela. O desafio seria a magreza.
     Claro, puxo conversa. Falamos sobre cabelos brancos - e eu na militância em defesa dos mesmos; falamos sobre filhos e netos e: conto-lhe do diário que eu escrevo para e sobre a minha netinha;  inevitavelmente,  a conversa chega na trajetória profissional de cada uma de nós.
     Ela foi  secretária do pai de um famoso apresentador, no Rio de Janeiro. Morava lá e amava - e ainda ama - a cidade. Transferido o marido  para São Paulo, com um casal de filhos, a menina recém nascida, demorou a se adaptar: chorou, muitas vezes, de saudade do mar. Sugiro que ela escreva suas memórias: no futuro, um bisneto, um tataraneto apaixonado pelo mar saberá a origem dessa paixão. E atiço: a escrita nos eterniza, dona Áurea. Estaremos vivos, através da nossa escrita, para os que virão, os filhos dos filhos dos nossos filhos,  aqueles que já amamos, mas que não conheceremos. Ela arregala os olhinhos: não tinha considerado esse caminho...
     Mora no nordeste por causa da filha, que se casou e que veio construir a vida em Natal.
     O marido foi gerente do Banco do Brasil.  Está com Alzheimer.  Conto-lhe das minhas experiências de esquecimento. Lembro- me do filme Para sempre Alice, que me impactou tanto. Ela me diz que vai assistir. E me conta que os filhos não têm paciência. Questiona essa doença cruel. E repete várias vezes: Os filhos não têm nenhuma paciência.
     Que medo! Que medo dessa doença. Que medo de me perder de mim. De me perder das minhas histórias. Acredito que nós somos as histórias que vivemos. Para o bem e para o mal.      
     Que medo da possibilidade dessa impaciência!
     E continua: o marido come bem, dorme bem.  Mas o banho é uma dificuldade.
     A manicure se levanta para abrir a porta. Nesse momento, me diz, me cortando o coração : Ah! Eu não posso continuar te contando porque minha filha chegou.
     Logo,  a moça da maquiagem me chama para outra sala e eu sei que, quando voltar, ela não estará mais lá porque só vai fazer as unhas das mãos e é rápido. Sinto uma peninha de deixá-la. Então, me abaixo e lhe dou uns beijinhos no rosto, me despedindo.
     Eu ficaria horas conversando com Dona Áurea. Acho que ela também, porque, ao retribuir meu gesto, me diz baixinho: Ah! Eu gostei de te conhecer! Gostei muito!
Ah! Dona Áurea, eu também!

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Vamos cuidar das nossas mulinhas!

     Eu ouvi essa história por esses dias. Não me lembro quem me contou, se foi da televisão. Ah, a memória!
     Contam que São Francisco de Assis, quando já estava envelhecido e adoentado, recebeu um dos seus auxiliares, com um pedido de ajuda, que lhe disse:
__ Pai -  dizem que é assim que eles chamavam São Francisco de Assis- eu estou com um problema. Um amigo meu tem uma mulinha e ele judia da mulinha, pai. Faz ela trabalhar com fome, com sede...
     São Francisco de Assis foi ficando assustado.
     Perguntou:
__ Meu Deus! Ele põe peso sobre a mulinha, meu filho?
__ Sim, pai. Ele sobe na mulinha!
__ Isso não pode acontecer,  meu filho. Nós temos que ir lá agora. Judiar de animais é pecado!
     Então, o assistente disse:
__ Pai,  a questão é a seguinte: É que esse meu amigo é o senhor. E a mulinha é o seu corpo...
     Neste início de ano, período em que estamos, todos,  traçando novas estratégias, avaliando percursos, definindo novos projetos, essa história vem a calhar.
     Há uma fase da vida,  principalmente para pais e mães, em que nós somos um pouco mulinhas.
     Deixamos de comer para alimentar nossos filhos; esquecemos nossa medicação para lhes dar o remédio certo na hora certa; deixamos de dormir para atender as suas demandas...
     Mas, depois, na medida em que eles crescem, vai sobrando mais tempo, tudo se aquieta e é possível voltar a cuidar melhor do nosso corpo.
     Dentre os vários projetos para o futuro, mesmo sabendo que alguns não se concretizam,  vou investir neste: cuidar mais da minha mulinha.
     Cuidemos todos das nossas mulinhas.
     O corpo é a morada da alma.