sábado, 12 de agosto de 2017

Sete graus

   Por ocasião do primeiro estágio do doutoramento, conversando com a amiga com quem eu dividia apartamento, à mesa, numa das refeições que fazíamos juntas, ouço-a dizer:
  ___ Meu pai nunca trabalhou no pesado. Trabalhou a vida inteira. Até hoje trabalha: comanda os peões na fazenda, dá ordens aos vaqueiros, administra a fazenda. (...) Gosto muito de carne. Acho que é porque fui criada na fazenda. Nunca faltava carne. Vi matarem vaca, porco... Eu ajudava na limpeza. Minha mãe sempre fugia; eu, não! Eu ajudava!
      Não presto mais tanta atenção à sua fala. As últimas palavras, ouço-as como se estivessem sendo ditas bem longe de mim. Viajei.
      A referência que ela fez ao pai remeteu-me a lembranças do meu próprio.
      Ao ouvi-la falar assim, uma imagem invade meu pensamento. Tão clara e tão real que dói e que me sacode por inteira. E já faz tanto tempo!
      Minha voz sai diferente. É difícil continuar a conversa. Uma lágrima grossa me interrompe a visão. E outra, e mais outra. Preciso tossir algumas vezes. A tosse me recompõe. Preciso piscar com força para ver se as lágrimas se dissipam e desistem.
      Meu pai comprava ossos nos açougues de Lins.
      Às vezes, ganhava-os.
     Minha mãe os cozia numa grande panela, guarnecidos com quiabos, maxixes, batatas doces, mandiocas,... o que tivesse.
     Não eram ossos. Para nós não eram apenas ossos.
     Havia a inabilidade do açougueiro em desossar as carnes. Ou será que era por piedade? O fato é que havia carne também. Uma carne que exigia estratégias de guerra para ser encontrada nas juntas, nas cartilagens: era preciso cutucar bem no fundo daquelas reentrâncias com uma ponta de faca, raspar com qualquer instrumento que fosse eficaz, desmontar encaixes de articulações. E lá estava ela.
     Além disso, havia o tutano. Meu pai pegava aqueles ossos recém-saídos de um panelão que fervia num fogão de lenha e segurava-os com um pano porque estavam quentes e precisavam ser comidos quentes.
    Os ossos, aos meus olhos, pareciam de dinossauro, tão grandes se materializavam no meu ângulo de visão ou talvez por causa da minha pequenez.
    Ele emborcava os ossos, deixando a abertura na direção de um prato, uma panela ou outro vasilhame qualquer que desse conta do tamanho do osso e batia nele. Batia com um martelo. E o tutano descia num tubo compacto, mas flexível e já ia caindo e se desfazendo e se quebrando em pedaços. Tão quente!
     Um calor que, de lembrança, me aquece agora as mãos gélidas e endurecidas pelos sete graus que faz lá fora na capital paulista.
   E comíamos todos. Com arroz. Com farinha. Comíamos.
   Faz tanto tempo! Mas ainda agora vejo as lascas de lenha em brasa, a fumaça subindo do fogão. Ouço as vozes, sinto o cheiro do tutano, vejo a farinha transformando-se em pirão.
   E vejo meu pai: mãos grossas, rudes, calejadas pela lida e pelo cabo de ferro do carrinho que ele arrastava pelas ladeiras linenses à cata de ferro velho. Vejo-o nitidamente, segurando, com firmeza, aqueles ossos. E vejo o tutano descendo. E ouço o barulho do martelo!!
   Não consigo mais comer!
   Engasgo. Tento tossir de novo!
   Faz sete graus lá fora. Faz sete graus no meu coração!    

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Tô rica! Tô rica! Tô rica!

     As estatísticas nem sempre são confiáveis. Numa delas, fala-se que apenas dezesseis por cento da população brasileira tem conseguido chegar à universidade. Mesmo que essa porcentagem esteja equivocada e que sejam mais pessoas a chegarem lá, ter concluído um curso universitário no Brasil ainda é um privilégio. Não deveria ser,  mas é.
     Para nós, pais professores, isso era imperativo. Nossa missão sempre foi levar nossos três filhos à conclusão de um curso superior.
     Que jornada!
     Nos primeiros anos, trabalhávamos numa escola particular que dava bolsas aos filhos dos  professores.
     Depois, com mudanças na instituição, passou a ser uma meia bolsa.
     E chegou o dia em que já não podíamos manter nossos filhos lá. 
     Esquisito,  não é? Dois professores que não conseguem dar educação formal de qualidade aos seus filhos.
     Naquela época, a escola pública estava em péssimas condições, diferentemente de hoje que, apesar de ainda enfrentar dificuldades,  tem verba garantida no orçamento,  tem pais da classe média que se viram forçados, com o desemprego, a levarem seus filhos e,  com isso, iniciaram um movimento de revalorização, participando de ações efetivas de empoderamento e reivindicando melhorias para a mesma.
     No nosso caso, tivemos a sorte de encontrar outra escola acolhedora, cuja proprietária é uma professora, amiga, e que nos deu condições de continuar a educar nossos filhos da forma que acreditávamos ser a melhor. E depois outra tão acolhedora quanto.
     Mas não são só as mensalidades o problema da formação. É um pacote: roupas, transporte, alimentação, material escolar, os eventos,  os presentes de aniversário dos amigos etc.
     Eu me lembro do meu espanto ao constatar que, quando os pés de um cresciam, os pés dos outros dois cresciam também. Jesus!
     Então veio a faculdade. Muita reza para que eles quisessem cursar cursos oferecidos pela universidade federal.
     Não foi bem assim. Seus desejos, suas inclinações eram para cursos que a federal não oferecia ou oferecia no interior.
     Deste modo, foram: um semestre de Letras/ inglês, cinco semestres de Engenharia Elétrica e um curso completo de História na federal. E três cursos completos na instituição particular: Direito, Jornalismo e Arquitetura.
     Os livros do Direito não superaram o custo dos procedimentos exigidos na Arquitetura.       Ainda tremerei se ouvir as frases:
__ Mãe, tenho que plotar.
__ Mãe, amanhã vou renderizar.
__ Vou comprar os materiais para a maquete!
     E o famigerado xerox?
     E também tem a vida social e afetiva desses seres em formação.
__ Tem festa na casa de fulano. Me comprometi  a levar carne!
__ Amanhã é aniversário de fulana.  Tenho que comprar o presente.
__ O professor de História está organizando uma excursão.  Vale ponto.  Tenho que ir.
     Eu passaria dias elencando frases como essas, muitas vezes ouvidas com desespero, mas respondidas com uma tentativa de serenidade, na maioria das vezes. Será que eles percebiam?
     E os namoros? Houve um período em que eu brincava dizendo:
__ Meu Deus! Depois de velha, eu ampliei minhas preferências?  Porque compro presentes para namorado e namoradas! E tinha até presente de aniversário para a possível futura sogra. Eram umas queridas, devo registrar. Todas. Mas eu, com as contas latejando na cabeça,  findava questionando:
__ Até a sogra?
     E eu dizia:
__ É,  na hora de beijar na boca, ninguém me chama!
     É ridículo o que vou contar.  Muitas vezes, entre um namoro e outro, me peguei negociando com eles,  orientando :
__ Fica sozinho/sozinha! É  tão bom!  Foca nos estudos! Olha, mas se for começar namoro, lembra que não pode ser perto da data do aniversário dele/dela, nem perto do dia dos namorados!
      Muitos anos de cheque especial,  de empréstimos bancários.
     Meus cartões de débito e de crédito passavam a maior parte do mês longe de mim.  E quando voltavam para a minha carteira, era certeza: sem saldo e sem limite.
     Cansei de ver o balanço anual de um certo banco, me horrorizar com o lucro absurdo que ele anunciava e de pensar com meus botões: Faço parte disso. Contribuí muito!
     O bom é saber que eles, meus filhos, valorizam nosso esforço. Que se sabem privilegiados por terem podido estudar sem trabalhar ou trabalhando em curtos períodos, quando tinham que estagiar ou quando surgiam oportunidades, nunca por obrigação ou necessidade.  Nunca foi: Se eu não trabalhar, eu não estudo!
     Talvez tudo isso faça com que vocês,  meus queridos amigos leitores - sim, porque quem lê os textos que publico neste blog são meus amigos - tentem entender o meu surto no dia em que pagamos o último boleto bancário referente à última mensalidade da última faculdade :
__ Tô rica! Tô rica! Tô rica!
     Hahahah
     Eu sei que não é bem assim. Nós sabemos, o Tito e eu, que ainda contarão com nosso apoio. E nós estaremos a postos.  Não dá para sermos felizes sozinhos. Não seremos felizes podendo ter uma vida melhor com filhos passando apertos.
     Como disse minha irmã ontem no whatsapp :
__ Aprovaram a reforma trabalhista! O que será dos nossos filhos?
     Neste país, o dia da formatura, quase sempre, antecede o primeiro dia de desempregados dos nossos jovens.
     Mas tenho esperanças. E estou feliz!
     E escrevo este texto um dia depois de ter assistido à defesa de TCC do meu caçula.
     Vou levar na mente e no coração a alegria dele e dos outros dois, não só no dia da colação de grau,  mas nos dias de todas as alegrias das suas vidas.
     Ah! Meus cartões de débito e de crédito estão na minha carteira!

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Quem canta é mais feliz!

     Eu adoro cantar.
     Não sei. Mas adoro.
     Quando digo não sei, é que não sei mesmo!
     Só para se ter uma ideia da intensidade desse "não sei", conto uma cena que se repete aqui em casa.
     Eu, na faxina, lavando um banheiro ou pondo uma roupa no varal, cantando. E alguém da casa, em algum momento, vem e pergunta, exclama ou comenta:
__ Mãe, porque você tá chorando? ou
__ Neusa, o que aconteceu?  Porque esse choro?
__  Conversa comigo. Fala que eu te escuto!
     E tudo termina em farra e risos.
     E eu, claro, voltando a cantar. Um melhor: achando que estou voltando a cantar.
     Poderíamos julgar que um pouco disso é má vontade. Mas assumo a parte da incompetência.
     Já tentei aprender.
     Entrei no coral da Unir. No dia em que fui chamada para classificar minha voz, ela, a voz,  sumiu.
     Foi um vexame.
     Mas, mesmo assim, ainda continuei por algum tempo.
     Só que a vida, as aulas, os estudos, a casa, os filhos pequenos... tudo me afastou do coral.
     Agora vou tentar de novo.
     Vi uma foto de um coral nas redes sociais.  Entrei em contato. Aceitam pessoas da comunidade. Primeiro encontro. Fui muito bem recebida. Pena que era o último do semestre. Início do recesso. Retorno no final de julho.
     Mas já senti o gostinho. A pasta de músicas é um oásis. Só músicas bonitas. Perguntei se terei que passar pelo processo de classificação da voz.  Simmmm! Ai, meu Deus!
     Aquecimento vocal. A primeira canção -ABC do sertão, de Luiz Gonzaga. O maestro se aproxima para ouvir melhor minha voz.
     E eu explicito minha angústia:
__Será que ela tem classificação?
     Ele sorri. É,  com certeza, alguém que, como diz a música, tem " fé na vida, fé no homem, fé no que virá..."
     O que sei é que estou muito feliz.
     Ainda nem cantei decentemente. 
     Ainda nem classifiquei minha voz.
     Para falar a verdade, ainda nem acredito que ela tenha ou mereça alguma classificação, mas já estou vibrando com a possibilidade de vir a cantar.
     Se acontecer, claro, vou contar aqui neste blog. Com certeza, minha cantoria merecerá um texto.  Se der agosto, entrar setembro e o assunto não voltar... Aí será o caso de imaginar que continuo lavando o banheiro e ouvindo dos meus amados:
__ Mãe, porque você tá chorando?

quinta-feira, 29 de junho de 2017

O bule térmico de cor berinjela

     Na casa da minha filha, há uma extensão que fica próxima ao sofá,  na sala, com três entradas. Quem está no sofá não precisa se deslocar atrás de uma tomada para carregar o celular.  Aliás, o carregador já fica conectado. Muito prático.  Comentei com ela essa praticidade. Na minha casa, na sala, as duas tomadas disponíveis  estão num local nada adequado;  temos que nos deslocar até outro cômodo para deixar o celular carregando sobre uma estante.
     Ela me disse : Mãe,  há uma máxima que diz "Se quiser uma solução rápida e fácil para um problema,  peça a um preguiçoso. É verdade! Essa extensão é coisa de preguiçoso. Mas gostei e lhe disse que faria o mesmo aqui em casa.
     Convenci meu marido de tal necessidade e, logo que possível, fomos comprar a tal extensão.
     Na entrada da loja, uma porta de vidro, com um adesivo com dizeres mais ou menos assim: Destinados à atender.
     Comentei: 
__ Olha como a língua portuguesa engana os falantes. É muito comum essa ocorrência - crase diante de verbo. Na perspectiva normativa, não haveria.
     No comércio, vemos sempre frases como "Camisetas à partir de vinte reais, por exemplo. Seguimos porta a dentro e ele já avistou, num balcão próximo,  uma ex aluna chamada Letícia.
     Sempre encontramos ex alunos, depois de mais de trinta anos na sala de aula.
     E ele já foi brincando com ela:
 __ Ah! Eu vim comprar uma extensão, mas, com essa crase, vou querer um desconto. E foi logo contando a ela o meu comentário. Língua de trapo! Depois dizem que mulher é que é faladeira!
     Fomos para o setor das extensões e a Letícia já me perguntando:
__ A senhora é professora?
     E eu:
__ É... sou. Quer dizer,  fui. Acho que sou né?  Estou aposentada, mas a gente não deixa de ser, né?
     Compra efetuada. Eu e o Tito na fila do caixa e Letícia se encaminhando para o setor de embalagem.
     Ainda na fila,  Letícia chega com a extensão numa sacola plástica. Delicadeza dela. O que é usual é o cliente efetuar o pagamento e apresentar o comprovante no balcão para retirar a mercadoria.
     Ela já vem entregando o produto, agradecendo a compra e informando:
__ Já avisei o meu chefe sobre o erro, viu!?
     Senhor! Não era necessário!
    Vi um setor de cafezinho próximo aos caixas e fui lá tomar um. Quando me virei, vi um moço vindo na minha direção.
 __ É a senhora que está falando mal da loja?
     E eu:
__ Não! Desculpe. Comentei em off. Meu marido é que contou para sua vendedora! Não era a minha intenção.
     Ai, meu Deus! Olha eu me metendo em confusão de novo! Ô carma!
     E ele, sorrindo:
__ Olha, a gente gosta de gente que apresenta a crítica e não que sai falando mal fora daqui. Muito obrigado!  Por isso, a senhora vai ganhar um brinde.
     E me entregou um pacote.
     Dentro, um bule térmico de cor berinjela. Lindo.
     Saímos da loja dando boas risadas. Ufa!

domingo, 18 de junho de 2017

Parada cidadã

     Muitas das pessoas da minha geração não dão conta da diversidade de gênero.  Seria hipocrisia afirmar o contrário. Nascemos numa época em que, oficialmente, havia homens e mulheres.  Os demais, onde estariam? Eram invisíveis. Estavam, provavelmente, em clínicas psiquiátricas, tratando de depressão e afins, ora considerados loucos. Na pior das hipóteses,  suicidas.
     Sou capaz de conceituar uns seis gêneros  apenas. Sabendo que não basta apenas conceituar, saber nomear. É preciso compreender.
     E há muito mais.
     Em Nova Iorque, em 2016, a Comissão de Direitos Humanos, buscando oficializar a multiplicidade das identidades de gêneros, reconheceu 31 nomenclaturas.
     Em 2014, o Facebook expandiu as possibilidades de identificação dos usuários para  muito além do par homem/mulher. Agora são 56 opções. Não é fácil,  realmente.
     Mas não dar conta não precisa, necessariamente, significar ser preconceituosa, ser excludente e cruel.
     O pouco que aprendi sobre este universo devo ao contato com pessoas educadas,  inteligentes,  interessantes, de uma alegria ímpar... e de outros gêneros.  Para ser sincera, seres humanos mais evoluídos. Em algumas circunstâncias,  ouso dizer,  gente bem melhor que nós, os héteros, os "normais".
     Esse contato - é preciso conhecer para amar- é muito importante,  mas não resolve tudo.
  Ainda me pego repetindo palavras, pronunciando expressões  que inserem em si preconceito e exclusão, apesar de o meu coração não compactuar com o que está posto nos seus sentidos, mesmo os mais sutis.
     Com relação a outro tipo de preconceito, quando reflito sobre essas questões,  lembro-me da minha mãe, referindo-se à sua vizinha, dizer:
__ Dona Francisca é uma preta de alma branca! Minha mãe amava a Dona Francisca,  eu não tenho nenhuma dúvida. Eram amigas de uma vida inteira. Plantavam e colhiam, juntas, o que produziam nos quintais, enfrentavam as tarefas mais pesadas, enfim, compartilhavam as agruras e as esperanças de serem mulheres pobres, mães de muitos filhos no interior de São Paulo, há muito, muito tempo.
     Mas ela não era capaz de perceber que a sua afirmação era preconceituosa. Que o seu dizer significava que Dona Francisca tinha que ter algo branco para ser aceita, nem que fosse a alma. Ela, simplesmente não sabia disso. Na verdade, dizer aquelas palavras era, para ela, elogiar a amiga.
     Temos que reconhecer que alguns valores se enraízam em nós ao longo do nosso processo educacional. Que irmos nos civilizando tem sido,  ao longo do tempo, ir aprendendo a classificar,  a separar, a distinguir e a excluir. E que tudo isso perpassa a linguagem.
     Mas percebo e me compadeço e sou solidária com as dores dessas pessoas, com as  limitações que encaram todos os dias para, apenas, ser e viver. Me revolto, sofro com as muitas histórias que já ouvi de violência física, nas ruas, e de violência psicológica dentro das casas. Ou ao contrário. Ou ambas em ambos os espaços.
     É a velha história: empatia. Basta nos colocarmos no lugar do outro. 
     Fiz isso por amorosidade. Porque aprendi, com minha filha, a respeitar  e a valorizar os seus amigos não héteros, que se tornaram meus amigos também. Senti no corpo e na alma, o absurdo da opressão, por exemplo, quando me imaginei recebendo um presente da pessoa que eu amo e que me ama e não podendo levar para casa por conta do embaraço, das explicações a serem dadas ao pai, à mãe, aos irmãos.  Terrível. Receber e ficar com, e usar um presente é básico.  É essencial.  Deveria estar na lista das necessidades primeiras do ser humano como alimentação, vestuário...
     E este se torna um fato banal se o confrontamos com a barbárie estampada na mídia, todos os dias, em todos os lugares.
     Na programação cultural desta minha estadia em SP, a última foi ir à Parada Gay.
     Vi um universo colorido. Vi alegria. O que mais vi foram pessoas  felizes como deveriam ser em outros tempos e em outros espaços. Vi gente que ama cada um à sua maneira, de acordo com a sua condição. Não posso omitir que também vi excessos, como ocorre em quaisquer aglomerações.
     Achei graça de um comentário que ouvi:
__ Gente, tem muito hétero aqui!
     É verdade! Uma mistura. Muita gente caminhando, dançando e cantando atrás dos trios. Mas também muita gente observando. Seriam os héteros observando os demais gêneros. Esperando ver o exótico? Eu mesma me lembro de ter comentado:
__ Ah! Eu vou! Não tenho um evento desses no meu currículo!  Seria um preconceito velado?
     De fato, é um mar de gente vestida a caráter,  maquiagem e vestuário extravagantes que, para quem não tem convívio diário, causa estranhamento.  E é fato que não são roupas usadas no cotidiano. É uma festa! Um dia especial.
     Mas tudo isso é embalagem. É externo.
     Na verdade, o que vi, de fato, são pessoas que querem o mesmo que todos nós queremos: viver!
     Viver em paz!

sábado, 17 de junho de 2017

Mais uma vez...partir.

     Amanheci com o livro "O pequeno príncipe" na mente. É muito citado. Merecidamente. Dele, os trechos mais lembrados, provavelmente, são: "O essencial é invisível aos olhos" e "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas."
     Gosto muito dos dois, mas o que mais me retorna à mente, e me impacta nas releituras, além do desenho da serpente, é o diálogo entre o pequeno príncipe e o guarda-chaves, numa estação, com o pequenino sem compreender aqueles trens cheios que se movem em direção opostas, sem conseguir dar sentido à razão pela qual os que estão aqui querem ir pra lá e os que estão lá querem vir pra cá.
     A resposta do guarda - chaves indica a dificuldade que nós, os seres humanos,  temos para nos apaziguarmos com o nosso entorno:
"__ Não estavam contentes onde estavam?
__ Nunca estamos contentes onde estamos."
     Penso nisso porque, mais uma vez, está chegando a hora de ir. Outra partida.
     Mas, diferentemente da constatação do guarda-chaves, estou feliz aqui e estou feliz lá. No meu caso, a dificuldade não é estar bem onde eu estiver. É querer ser duas, é querer viver duas vidas. Estar aqui e lá simultaneamente.
Isso soa quase como ingratidão. Como se eu não reconhecesse as dádivas que tenho recebido.
     Mais ainda. Como se eu não fosse capaz de compreender as muitas vidas que tenho vivido.  Todos os recomeços. Todas as novas chances e oportunidades. E as muitas mulheres que puderam viver em mim e que me coabitam ainda agora.
     Reconheço.  Compreendo. E sou grata.
     Mas sempre queremos mais, não é?
     Na impossibilidade da concretização do desejo, resta-me abençoar este espaço,  este tempo. Bendizer esta minha amada que fica, seguindo a vida. E vislumbrar a chegada.  Já me regozijando com os abraços,  os carinhos e os mimos que me aguardam. E também me preparando para os problemas do cotidiano, aos quais nenhum mortal está imune.
     Num livro que li esses dias: "A vida que vale a pena ser vivida", dos autores Clóvis de Barros Filho e Arthur Meucci, uma constatação é a de que, no final das contas, o único patrimônio  que temos é a soberania de deliberar sobre a vida que queremos viver. Soberania esta tão atacada pela mídia e por outras instâncias que tentam- e muitas vezes conseguem- decidir por nós, inclusive, sem que percebamos.
     Vivemos a ilusão de que fomos nós que escolhemos aquela roupa, aquele trabalho, as férias naquele lugar, a cidade em que moramos, os nossos valores e conceitos, enfim, a vida que vale a pena ser vivida.
     Estou em paz. Escolhi estar aqui e agora como também escolhi partir e estar lá nos próximos dias. 
     Pacificada. 
     Simbora!
     Meu corpo embarca.
     Mas um pedaço do meu coração fica.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Se um homem, um dia...

     Há 41 anos, em 1976, eu estava na oitava série. Era uma menina como todas as outras: crua de vida.
     Não havia, pelo menos no meu universo, o feminismo, ou discursos feministas. Lei Maria da Penha então,  nem em sonhos! Não havia mulheres abusadas por seus parceiros, agredidas, violentadas.
     Essas mulheres, com toda certeza, existiam. Mas eram invisíveis.  Para mim e penso que para a  maioria. A violência era velada, acobertada,  covardemente impune.
     Elas se casavam ouvindo das mães que casamento era pra vida inteira. Que separação era uma vergonha. Que deviam servir a seus maridos e serem obedientes.
     Minha mãe nos  contava das dificuldades com o meu pai e quando a inquiríamos sobre o porquê de não ter se separado, ela dizia que, naquele tempo, mulher separada era tida como prostituta. Era a sua razão. Poderíamos nos questionar sobre seus valores.
     O que sei é que me peguei,  ao longo da vida, agradecendo a Deus por não ter cruzado com homens agressores. Nunca, na minha vida, estive próxima de qualquer intimidação masculina.
     Também sempre imaginei que, se isso tivesse me acontecido, eu já estaria morta. Sei que reagiria. Sei que o enfrentaria. Sou brava! Tenho um instinto de preservação imenso. Acho que não sucumbiria sem reação.
     Acho.
     Mas, só saberíamos, de fato, como reagiríamos a uma situação, se a vivenciássemos .
     Hoje, assistindo ao quadro "Segredos de justiça" no Fantástico,  sobre um caso de violência doméstica, me veio à mente dona Jaci, minha professora de Ciências no colegial.
     Lembrei-me  do modo como ela nos chocava a todas e a todos quando, no meio da aula, interrompia uma atividade ou uma explicação para nos orientar para a vida e,  com o dedo em riste, olhando para nós - as meninas, fixamente, determinava:
__Se um homem, um dia, levantar a mão para vocês, matem! É a única forma que vocês têm de garantir que ele nunca mais vai erguer a mão de novo pra vocês!
     Repito: era chocante!
    Ela era uma mulher grandona. Descendente de japoneses, mas grandona e rechonchuda, no seu jaleco branco, com seus cabelos negros, curtinhos.
     Eu nunca esqueci dona Jaci.
     E a ouvi repetir esse mantra, várias vezes, ao longo da minha vida. Todas as vezes em que ouvi  histórias de violência.
     Teria sido ela própria uma vítima?
     Não é possível saber.
    O fato, como disse, é que não fui posta em nenhuma situação em que pudesse pôr à prova a eficiência do seu ensinamento.
     O que constatei, finalmente, é que vim sentindo uma certa gratidão pela dona Jaci, nesses anos todos. Sem perceber.
     Hoje, essa gratidão aflorou um pouco mais.
     Pelo alerta:
Se um homem, um dia...
   Será que algumas das suas alunas precisaram utilizar seus ensinamentos. Será que os utilizaram ?
     Seria uma pena. Não se pode combater violência com mais violência e acreditar que esta seria uma solução.
     É Lamentável. E triste. 
     Para todos nós, homens e mulheres.
   Para todos os homens que ainda não transcenderam aos enganos das relações e que concebem suas parceiras como seres menores, inferiores, propriedades suas.
     Até quando?

quarta-feira, 31 de maio de 2017

A velha do cachorro

     Nosso cachorro foge de casa. Por isso, toda entrada e toda saída é uma operação de guerra: abre-se uma porta, fecha-se,  mantendo-o na sala anterior e só então abre-se a que dá para a rua.
     Quem nos visita sabe. Não raro, um desavisado abre a segunda porta sem ter fechado a primeira e lá vai ele em busca da deliciosa felicidade chamada liberdade.
     Ou também quando há um prestador de serviço - um pedreiro ou um pintor.  A cena se repete até que ele internalize o procedimento.  Acho que a informação que mais dou aos que chegam pela primeira vez é : Ele foge!
     Nessas situações de fuga, acontece o inevitável. Se há mais alguém em casa, peço que o busque, mas, se estou sozinha, saio correndo atrás dele.
     O pior: sabe aquelas roupas que temos pra ficar em casa? Confortáveis, mas inadequadas para a vida social? Pois é. É com elas invariavelmente que desço pela minha rua gritando: Goya! Goya!
      Nessas horas, imagino o ridículo da cena, peço a Deus que as casas todas estejam sem os seus moradores. Mas me submeto.
     Eu amo o Goya. Não queria. Relutei muito. Mas amo. É um espertalhão, é  certo. Se aproveita da minha incompetência e faz comigo o que não faz com os outros moradores. Rasga as barras dos meus vestidos ou a as mangas das minhas camisetas pulando, pedindo algo.
     Pela manhã, fica no pé da escada até que eu saia do quarto e verifique a água, a ração e lhe dê dois bifinhos.  Antes era um só. Mas ele reclamava e me dizia nos latidos que a quantidade não era suficiente. Já aprendi que nunca é. Se deixar,  come todos que eu der.       Pelo menos essa lição eu aprendi.
     Imagino como fica quando não estou em casa. Me corta o coração. Ele também me protege. Se alguém que ainda é estranho a ele se aproxima de mim, ele avança.
     O fato é que, depois do Goya, me apaixonei. Se vou a um pet shop e vejo cãezinhos à venda ou se os vejo pela rua necessitados de banho, comida e afeto, fico tentada a levá-los.         Meu medo é eu começar a lotar minha casa de cachorros. Costumo dizer que fui traída, porque ninguém me alertou sobre as emoções que envolvem essas relações. E que se eu tivesse assistido ao filme "Marley e eu" antes da decisão,  eu jamais teria deixado ele vir.
      Minha relação com  animais foi tardia. Quando minha filha insistiu que queria um, demorei a concordar. Avisei que não cuidaria dele. Que a responsabilidade pela alimentação e pela higiene seriam dela.
     Foi.
     Só na primeira semana.
     E me vi tendo que cuidar de um cão sem nenhum saber prévio. Assim,  tratei-o como a uma criança recém-nascida, quando chegou: uma bolinha peluda, linda, que cabia numa só mão.
    Disseram que ele era uma mistura de Maltês com Poddle. Por isso o nome Goya, em referência ao pintor. Nada! É um Vira- lata. Foi só pra valorizar o passe.
    Agora estou na casa da minha filha. Num bairro em que há muitos cães.  E eu os vejo sempre. Como não temos carro aqui, as idas ao supermercado são  mais frequentes porque trazemos os mantimentos aos poucos.
     Ontem, na volta, vinha na direção contrária,  uma senhorinha com seu cão. Enorme,  pêlos compridos. Não sei a raça. Nunca sei. A não ser que sejam bem distintos, como um Pit Bull, por exemplo.
     Eles conversavam.  Ou ELA conversava com ele?
O diálogo (ou monólogo? ):
Não se pode combater violência com mais violência e acreditar que esta seria uma solução. 
__ Foi o queijo que você comeu ontem. Eu falo pra você não comer. Você sabe que não pode! Mas você é teimoso. É isso que dá!
      A velha do cachorro!
    Meu Deus! Tanta luta! Tanto estudo! E vou me tornar aquela senhorinha,  a velha do cachorro! Ou dos cachorros! Apontada na rua pelos vizinhos: a velha do cachorro! Jesus!
     Não sei se conseguirei evitar esse fim, mas, na dúvida, já estou tomando uma providência: vou melhorar a qualidade das roupas que uso quando estou em casa.
     Se o Goya fugir de novo...

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Sapatilha Vermelha

     Vivi uma cena recentemente que me fez me lembrar dos meus filhos na entrada da  adolescência: aquela fase da vida em que não são mais crianças, mas também ainda não são adultos.
     Lembro-me especialmente da minha filha me pedindo presente no dia das crianças, e eu lhe dizendo que ela não era mais criança. Querendo sair à noite e ouvindo como resposta que não tinha idade suficiente para tal, ou seja, que ainda era criança. Ou quando eu solicitava ajuda em alguma tarefa doméstica e ela retrucava dizendo que ainda era criança, para escapar. Mas já queria roupas da moda. E usava batom.
     Há alguns anos, ganhei da própria, no dia das mães, uma sapatilha Via Uno vermelha. Linda. Clássica.
     Sabe aqueles sapatos que a gente usa todo o tempo, em, praticamente, todas as ocasiões e lamenta seu desgaste, inclusive adiando o fim da sua vida útil?  Pois é. Foi o caso.
     Quando é com relação a roupas, costumamos usar a expressão "bate-cuara". Do varal pro corpo e do corpo pro varal.
     Passaram - se alguns anos e eu já vinha sentindo uma vontade de reeditar minha parceria com a sapatilha vermelha. Até procurava ver se vislumbrava uma nas vitrinas das lojas, mas até então, não tinha, de fato, tentado efetivar a compra.
     Assim, buscando realizar meu desejo, na semana passada, fui a uma loja no Shopping.       Disse à vendedora:
__ Olha, eu quero uma sapatilha vermelha, sem detalhes, clássica, com um saltinho baixo.     Pode ser da Usaflex ou Ramarim Confort. Também pode ser Beira Rio, Picadilly, ou qualquer outra marca que tenha linha conforto.  Hoje em dia muitas têm, né?
     Na medida em que eu falava, a moça ia movendo a cabeça de um lado para o outro e, antes que ela abrisse a boca, já tinha me informado, com seu gestual, que o que eu queria ela não tinha na loja.
     Mesmo assim, me informou com palavras, em seguida, para que não restassem dúvidas:
__ Olha,  o que a senhora quer nós não temos.  Mesmo assim,  vou lá em cima  (no depósito) e trago tudo o que eu achar.
     Aproveitei a espera para andar pela loja. No setor do conforto até achei uma sapatilha vermelha,  mas com uma imensa fivela dourada na parte da frente e com um laço tão vermelho quanto a própria. Cafona. Quero conforto,  mas também beleza.
     Passados alguns minutos eu a vejo descer a escada com apenas duas caixas na mão.     Vocês bem sabem que, nessa situação, o vendedor vem com tantas caixas que parece um equilibrista com o rosto escondido atrás da pilha.
     E me mostrou duas sapatilhas que em nada atendiam as minhas especificações.
     E disse:
__ Olha, o que a senhora quer não existe. Geralmente as marcas que fazem a linha conforto, fazem bege, cinza ou preta. Quase que eu a interrompi pra acrescentar: E com fivelas horrorosas! Mas me calei e continuei ouvindo: A senhora quer vermelha!?!? E fez um gesto elevando os braços e as sobrancelhas como quem diz: A senhora é ponto fora da curva! Quer conforto, mas quer também elegância, beleza e em vermelho,  cor da alegria,  da paixão e da juventude???
     Só aí me dei conta daquilo que, para a vendedora, soou como contraditório.
   Em outras palavras, estou na interface,  no entremeio,  na terceira margem, no meio da ponte que separa a idade madura, digamos assim, da velhice. Sem definição, tal como as minhas crianças na entrada da adolescência. Não sou mais nova, é verdade, mas não sinto que sou velha! Diria a vendedora: Ou a senhora trata de se resignar à passagem do tempo e vai na beginha ou banca um sapato vermelho, com salto mais alto e com dor nas pernas!     Conforto zero!
     O que eu quero não existe. O mercado não se deu conta da mulher que sou. E deve haver muitas como eu. Que ainda querem o vermelho das sobrancelhas levantadas da vendedora, mas que também jà querem e já precisam de conforto - as pernas agradecem.
     A,i meu Deus!  Saí de lá dando umas risadinhas. Sou uma contradição.
     Mas vou continuar atrás da clássica, elegante e confortável sapatilha vermelha.
   Olho o passado e vejo que foi sempre assim:  eu na contramão, eu contrariando as previsões, eu querendo ir mais além do que estava posto pra mim.
     Está tudo bem. Está tudo certo.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

(014) 3522-7404



"... Segura teu filho no colo. Sorria e abrace seus pais enquanto estão aqui. Que a vida é trem bala, parceiro, e a gente é só passageiro prestes a partir." (Ana Vilela)

Esse é o número de telefone da casa da minha mãe. Ainda está na minha agenda. É um número que não existe mais. Não adianta tocar. Ninguém vai atender. Contra toda a lógica e a coerência, ele continua na minha agenda. Talvez porque sabê-lo anotado lá me aquiete a alma. Um caminho que encontrei, após o seu falecimento, foi substituir as ligações dos domingos. Às vezes, ligo para o meu irmão e para a minha cunhada: Filadelfo e Neide. É dos poucos números que sei de cor.
Minha mãe não foi uma mulher fácil.  Ou melhor,  minha mãe foi a mulher que ela pôde ser, considerando-se o tempo e as condições em que ela viveu. Quando ponho na mesa todas as limitações emocionais, econômicas e relacionais, posso garantir que ela foi uma grande mulher.
Apesar de ter me prometido que eu não seria igual a ela, me pego, no dia a dia, repetindo suas histórias, seus provérbios, seu humor - ela gostava de umas piadas ingênuas e picantes, o que parece contraditório,  mas não era. Mais que isso, me pego repetindo suas ações e o seu gestual. 
Pariu quinze filhos. 
Dentre as dores que carrego comigo estão, com certeza, cenas em que ela explicitava sua preferência por algum filho - e não era eu. 
Uma vez, estávamos na sala da casa dela e ela se levantou dizendo que ia fazer um café. Vibrei porque adoro café e café de mãe então... Mas ela, sem traquejo nenhum, me falou que ia fazer porque um dos filhos chegaria e ele adorava café fresquinho. Bem, peguei a rebarba. Fui de carona e tomei o café valorizando-o do mesmo modo: café fresquinho de mãe coado em coador de pano. 
Seria possível amar 15 pessoas diferentes da mesma maneira? As mães dão aos filhos aquilo que elas acreditam que é o melhor para cada um. Assim, aqueles que lhes parecem mais frágeis e mais carentes recebem dose extra da sua atenção e do seu amor. 
Acho que ela sempre soube que sou feita de rocha. Que me levanto sempre. Que sou fênix e que, por isso, renasço e me reconstruo, quaisquer que sejam os tropeços. Ela sabia que eu sobreviveria.
Lembro-me também da última vez em que estivemos juntas, eu pedi que ela cozinhasse uma galinha caipira do jeito que só ela sabia fazer. Ela, já muito cansada, desconversou, contou da dificuldade de se encontrar uma galinha caipira, caipira mesmo, e voltei para Porto Velho sem satisfazer meu desejo. Tentei, ao longo da vida, e ainda tento imitá-la, mas em vão. Mesmo com mais e outros temperos, meu cozido naufraga. Não é igual. Nunca será igual. 
Uma das melhores lembranças é  quando eu ligava para ela contando que iria fazer uma prova ou participar de algum processo seletivo para estudo ou trabalho e pedia que ela rezasse por mim. Ela me dizia, sempre: Ah! Minha filha, você quer que eu reze, eu rezo.  Mas não precisa, você vai passar! Queria eu acreditar tanto em mim como minha mãe acreditava. E, de fato, eu ia passando, o que só reforçava o seu engano e garantia a repetição da fala, na próxima vez: Você vai passar, minha filha! É isso: ela achava que eu era inteligente e eu gostava disso e nunca a desmenti. Omissões a serem perdoadas.
Também vejo em mim um pouco da sua dureza, principalmente nas relações,  na incapacidade do perdão. Suas dificuldades com o meu pai, ela as transformou todas em lamentos e nos fez sentir por ele o que ela mesma sentia. Demorei muito para compreender que os meus sentimentos em relação ao meu pai não eram, de fato, meus. Tarde demais. 
A meditação e a oração são as possibilidades nas quais busco hoje essa compreensão. Também é na religiosidade que tenho ancorado uma esperança de reencontrá-la, de reencontrá-los a ambos, minha mãe e meu pai. Sonho com o dia da minha passagem como um dia de reencontro. Tenho esperança de ser digna dessa dádiva. De ser merecedora desse presente: abraçá-los e dizer apenas palavras de amor, de perdão e de autoperdão. E enfim, saber e sentir que está tudo certo. Que tudo está no seu devido lugar.

quinta-feira, 16 de março de 2017

Compaixão para as mulheres fortes!

As mulheres fortes são aquelas que cuidam de tudo e de todos. O tempo todo.
 Na vida afetiva, no lar e no trabalho elas são o suporte. Tudo o que é urgente, complicado e trabalhoso cai nas mãos delas.
Em casa, recebem todos. Os aniversários, os novos anos que chegam, as celebrações do Natal... É para a casa dela que vão todos.
As comidas são sempre fartas e deliciosas.  A delicadeza de se lembrar do caldo revigorante, do licor e do cafezinho para o fim da noite não é sequer notada. Tudo tão perfeito que não parece ter dado trabalho algum. Mas deu e muito. Ela está exausta. Mas feliz.  É cuidadora. 
O tempo passa. A mulher forte envelhece. E, no período em que está mais vulnerável, se descobre só. E tem dores. No corpo e na alma. Onde todos os que lá festejavam? Quantos saberiam responder onde e como ela passou o seu último Natal?   
Coitadas das mulheres fortes!
No momento em que mais precisam, descobrem que as pessoas do seu entorno só sabem ser cuidadas. Só enxergam o próprio umbigo.
Que as mulheres fortes possam se reconhecer, em tempo, merecedoras do mesmo cuidado que dedicaram aos outros a vida inteira. Mas que não apenas isso. Que falem, que expressem suas faltas e que reivindiquem presença, acolhida e atenção. Que gritem, se for preciso.
Suas dores precisam ser aplacadas.
Aproveitando este mês das mulheres, que deveriam ser todos os meses de todos os anos,  não vamos apenas enviar flores,  bombons e ou felicitações. Vamos dar colo para as mulheres fortes. O que seria de nós sem elas?