segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Seu Inácio


 

Ele é uma pessoa especial. É raro poder afirmar que alguém é especial nos dias de hoje, onde tudo está tão massificado: às vezes, tenho a impressão de estar vendo uma multidão de robôs vestidos da mesma forma, falando, cantando, pensando do mesmo modo, Meu Deus!
Seu Inácio deve ter, no chute, entre sessenta e setenta anos (eu sou muito ruim de chute!), mora na mesma rua que eu e é o marido de uma professora amiga minha. Ele está no seu segundo casamento. É aposentado. É falante, curioso, vivo. Conversa muito e demoradamente sobre tudo: política, educação, tecnologia, etc.
O grande problema do Seu Inácio é que ele dispõe de um tempo que nós não podemos nos dar o luxo de dispor, jogando conversa fora. O homem contemporâneo perdeu a medida do tempo e não consegue mais lidar com ele de forma saudável. O dia sempre parece menor, o trabalho está sempre atrasado e nunca damos conta dos compromissos assumidos. O Seu Inácio é um homem que merece o tempo das pessoas.
Quando ele se mudou para a minha rua e foi aos poucos conhecendo as pessoas, foi se aproximando de todos: um cumprimento no portão de casa, um comentário sobre o tempo e, depois, longas conversas.
Acho que por saber que somos professores, meu marido e eu, o Seu Inácio, talvez ainda acreditando que os professores sabem das coisas, passou a nos procurar com suas dúvidas, seus dilemas, suas curiosidades.
Um dia, num domingo bem cedinho, Seu Inácio nos bate à porta. Ao abrir, ainda sonolenta, ele me pergunta, de chofre:
__ Professora (ele só me chama de professora), o Colosso de Rhodes? O que foi o Colosso de Rhodes, professora? Foi algo grande! Sim, porque colosso vem de colossal, que é grande. Então sabemos que foi uma coisa grande, mas o quê, professora?
Eu, ainda meio fora do ar, disse que não tinha a menor idéia, Seu Inácio! E ele, sem me dar tempo de responder, na lata:
__ Pesquise, professora, pesquise. Precisamos saber!
É mesmo, Seu Inácio, como é que eu sobrevivi tantos anos sem saber o que era o Colosso de Rhodes?!
Dias depois, contando esta história aos meus alunos, que eu achei belíssima, um deles me disse que o Colosso de Rhodes foi uma estátua gigante de pedra que ficava no mar; era tão grande que os navios passavam no meio das suas pernas; disse também que é considerada uma das sete maravilhas do mundo e que foi destruída num terremoto.
Fiquei animada de poder responder aos anseios do meu vizinho e logo que o reencontrei, contei o que o meu aluno havia dito. Seu Inácio ficou muito satisfeito.
Um tempo depois, veio solicitar ajuda para viajar na Internet: havia comprado um computador e entrado num curso de computação, mas estava infeliz, o curso era muito lento e ele tinha pressa. Foi, então, o Thiago, nas horas livres, lá pra casa do Seu Inácio.
Um dia, ele deixou na porta de casa um embrulho: era um presente para o seu novo professor.
Agradecemos o gesto carinhoso, dissemos que não precisava.
Ainda o ajudamos numa outra vez, agora sobre a etimologia do seu nome. Seu Inácio nos contava que o único nome cuja origem e significado ele nunca havia encontrado era o seu. Quando me dispus a procurar, ele nos surpreendeu: não se chamava de fato Inácio, seu verdadeiro nome era Isaurino.
Já que estava com o livro nas mãos, não custava dar uma olhada e lá estava: Isauro, do latim, igual a ouro. Isaurino, então, era o adjetivo que virou nome próprio, algo como de ouro, ou dourado.
Surpreso por acharmos os nomes e feliz com os significados, lá se foi o Seu Inácio, feliz da vida, acreditando ainda que os professores sabem das coisas.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Huummmm! Delííííícia!!!!



Era por volta de seis horas da manhã. Manhã de um domingo. Dia 15 de julho de 2012.
Estávamos exaustos. Vínhamos de uma experiência que, cada vez mais, as pessoas estão vivenciando na cidade de Porto Velho, que inchou – e não cresceu – após e durante o advento das usinas: batida no trânsito. Se bem que, naquele caso, nem foi por causa do aumento da frota e nem da negligência de outros motoristas.
Foi por causa de negligência sim, mas apenas do meu caçula, recém-motorista, antes da conscientização de que um carro é uma arma e de que, à noite, deve-se parar até no sinal verde e dirigir com velocidade máxima de 50 quilômetros por hora etc. essas informações que nós, pais, repetimos, incansavelmente, e que eles, os filhos, já nem ouvem mais, e chamam de blá-blá-blá. Enfim, o acidente foi antes de ele amadurecer como motorista.
Fui acordada por volta das quatro horas da manhã, pelo mais velho que, esbaforido, tentava achar os dados da seguradora. Em seguida, e antes que pudesse respirar e assimilar a notícia, outro telefonema. Desta vez, era uma amiga da minha filha que, tão esbaforida quanto, me dizia: Tia, estamos indo aí te buscar! O Lucas está queimado!
Quem é mãe pode imaginar meu desespero.
Levantei-me, troquei de roupa e saí reunindo o que eu julgava que seria útil: algodão, rifocina, soro fisiológico, pomada contra queimadura.
Chegando lá, vi o Lucas, em pranto, com o braço queimado: o air bag abriu um minuto após a batida e soltou um ar quente que o atingiu. Além disso, um pequeno hematoma próximo ao olho e um corte no braço.
Um amigo, com o nariz sangrando e outra amiga, com as marcas da freada causadas pelo cinto de segurança.
Depois...bem, depois o de sempre: contato com seguradora, guincho, espera, justificativas, explicações e mais espera.
Soube depois que a galera que lá estava reunida quando eu cheguei – é impressionante a capacidade que eles têm, em tempos de celular e de internet, para se comunicarem: é instantâneo, imediato - se preparou para ouvir a bronca que eu daria.
Como uma mãe que sabe que o filho sofreu um acidente de trânsito e que está ferido pode brigar antes de acudir, socorrer, fazer curativo, abraçar, acalmar? Pudemos rir dias depois, que é o que fazemos todos nós quando os imprevistos que nos ocorrem não são fatais e podem, com o tempo, ser esquecidos.
Voltemos agora às seis horas da manhã, horário com o qual iniciamos essa conversa.
À mesa da cozinha, atordoada, com dúvidas sobre se conseguiria voltar a dormir, pensei num chá.
Aqueci a água meio em câmera lenta, escolhi camomila, é claro, e aguardei o tempo necessário da infusão. O Lucas já no quarto, ressabiado, assustado ainda.
Aí vi minha linda menina, sentada à mesa também e me vi perguntando-lhe:
__ Você quer chá, filha?
E ela:
__ Quero, mãe, vou ficar aqui com você e tomamos chá juntas.
Assim que eu a servi, ouvi sua voz:
__ Huuummmm, delícia! E tomamos juntas e demoradamente o chá, vendo a claridade do dia vir chegando.
Precisei de alguns dias para entender o que houve naquele dia: a Larissa detesta chá! Jamais toma chá!
Só então constatei o seu gesto generoso e solidário. Não pôde me deixar sozinha na cozinha, o dia amanhecendo, eu, naquele estado de perplexidade.
Dividindo o chá comigo, sentiu-se dividindo as minhas dores também.
Em dias difíceis, esta lembrança me aquieta a alma. Posso me perdoar pelas minhas limitações, pelas minhas fraquezas.
Se fui capaz de gerar seres humanos tão delicados – e eu fui – é que houve acertos na caminhada.
Graças.
Assim, nesses dias difíceis, me lembro, às vezes, dessa loirinha dizendo:
__ Huuummmm, delícia!
E rio, feliz!
Como estou rindo agora.

Meias, cabelo e determinação


Adoro as pessoas determinadas, donas do seu nariz, que sabem o que querem  e não se importam com a opinião alheia.
Talvez por ter demorado a conseguir ser assim. Os outros sempre foram o meu inferno. Fui ensinada a me preocupar com o que os outros vão falar, com o que os outros vão pensar.
 A vida me ensinou que os outros não pagam as minhas contas. Os outros não estão preocupados com a minha felicidade. Os outros não querem saber se há feijão na minha mesa. Os outros são os outros.
Queria ter sido assim desde pequena.
Por isso, gosto muito de educar meus filhos para que sejam livres dos outros. Para que sigam seus valores, para que sejam dignos, decentes, mas não cobaias dos outros.
O meu filho Lucas é a personificação desse tipo de personalidade.
Recentemente, ele estava com poucas e velhas meias e reclamou. Fui, então providenciar uma renovação das próprias. Com pressa, atrasada e cheia de compromissos para ontem, acabei por comprar um tipo de meias que ele não costumava usar. Ao invés de comprar as tipo soquete, de cano curto, boas para usar com tênis, comprei, por engano, umas de cano longo, com a estampa de um desses personagens de desenho animado que passa na tevê.
No dia seguinte, ouvi a Larissa mal humorada dizer que não iria para a escola com o irmãozinho vestido daquele jeito, que ele a mataria de vergonha.
Fui ver o que acontecia para, como toda mãe, sempre, apaziguar os ânimos. Encontrei um leãozinho com as meias esticadas até a altura do joelho, encontrando se com a barra da bermuda, decidido a usar as suas meias assim. Tinha adorado a estampa e queria que ela ficasse à mostra.
Argumentei que não era assim que ele estava acostumado a usar. Que os colegas estranhariam e até ririam dele, e o ridicularizariam.
Não se importou. Queria ir assim. Não estava fazendo mal a ninguém. Não ligaria para as chacotas dos coleguinhas, se elas acontecessem.
E foi. Comentei com o Tito que ele, com certeza, não suportaria as pressões na escola e acabaria abaixando as meias.
Me enganei completamente.
O Lucas voltou ao meio dia com as meias na altura dos joelhos, com um olhar de felicidade suprema. Fiquei muito feliz. Meu filho já sabe o que quer. E tem apenas seis anos.
 Num outro episódio, travou uma briga com o pai. O motivo dessa vez era o cabelo. O pai gosta de vê-lo com um corte surfista. Ele adora máquina dois na cabeça inteira. O pai argumenta que fica feio. Que a cabeça dele é meio torta, que não fica bem.
Ele retruca dizendo que a cabeça é dele. Que é ele quem tem que escolher. Que aquele corte não o prejudica e nem prejudica outras pessoas. Qual o problema?
No salão, comigo, enfrenta uma nova batalha. Muitas mulheres, todas dando palpites:
__ Vai cortar? Corta surfista. Vai ficar lindo.
__ Por que não corta com franjinha, arredondando na nuca. Esse cabelo loirinho vai ficar uma graça!
Lucas silencioso, calmo, tranquilo.
Na hora H, a cabeleireira, Neide, pergunta:
__ E aí, Neusa? Como é que eu corto?
Eu, rindo um pouquinho por dentro, respondo:
__ Neide, pergunte ao Lucas. Vai ser do jeito que ele quiser.
E ele, sereno:
__ Pode passar máquina dois na cabeça inteira!
Voltamos do salão. Um carequinha vem ao meu lado, feliz. Em casa, o pai, sem tato:
__ Ah! Lucas! Ficou feio.
__ Pai, eu gosto assim.
Eu também, meu filho. Eu gosto assim.


segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Voltar


Que belo verbo! Que bela imagem! Retorno, regresso, retomada, recomeço. Um professor que tive, de Literatura Brasileira, dizia-nos que viajar é muito bom; que a viagem nos faz voltar melhores. A distância nos possibilita, na verdade, nos obriga a um redimensionamento da vida que temos levado, das relações que temos estabelecido.
Longe, vemos o que, de fato, é essencial. Aparamos as arestas, limpamos a visão daquilo que a turva no cotidiano, mas que não sobrevive a uma análise mais apurada. De longe, é poeira, não tem a mínima importância, é bobagem.
Estou de volta, depois de cinco longos meses e quinze dias de ausências e de saudades.
A minha casa, os meus filhos, o meu marido, a minha rotina continua a mesma, mas ... não é mais a mesma. Que prazer ver meus filhos retornarem da escola! Que sensação boa estar com eles à mesa para o almoço. Que presente de Deus o café cheiroso, no domingo pela manhã, eu e meu amado, quando os pequenos ainda dormem.
Conversa fiada, planos para o futuro, contas a pagar... e o café fumegando, aquecendo a alma.
Dormir na minha cama!! Meu Deus, como é bom!!
E pensar que, antes da viagem, vínhamos reclamando do colchão velho e incômodo, afundado na forma dos nossos corpos já marcados pelo incomensurável do tempo.
Agora é uma maciez que causa espanto!
Bom tomar banho no meu banheiro, vestir as roupas que ficaram pra trás, fazer uma tarde de pastéis para molecada e cuidar dos sobrinhos.
A vida se transformou.
É. Meu professor tinha razão.
Ao voltarmos de uma viagem, nos tornamos melhores vizinhos, melhores pais, melhores irmãos, melhores amantes...
Tudo o que nos infelicitava antes passa a ter importância menor, já não dói tanto.
Dizem que conselhos não são bons. De fato, tenho algumas restrições a eles. Parece que quem vê de fora os nossos dramas, os nossos dilemas e as nossas limitações não dá conta de vê-los em toda a sua complexidade. Mesmo assim, vou arriscar um para o meu leitor: viaje!
Se não é possível sair do estado, vá até um hotel fazenda, vá a Guajará-Mirim, Cacoal, Vilhena. Vá, pelo menos, a Ariquemes. Se não der, pare em Candeias.
Se mesmo assim, ainda é impossível, então, mude-se num final de semana. Hospede-se num hotel aqui mesmo. Fique dois ou três dias... Experiencie a sensação de ser um estrangeiro, de estar num lugar que não é seu, dormindo numa cama que não é a sua, comendo alimentos diferentes, apreendendo hábitos, valores e rotinas que não são as suas.
Depois, arrume as malas e volte. A vida será muito melhor!
Eu, pelo menos desta vez, pretendo seguir este conselho.
Espero que a magia desses dias de vida nova dure muito tempo, mas, quando eu sentir que ela começa a esvair-se, que ela inicia um processo lento de extinção, vou fazer uma viagem. Não preciso de sofridos cinco meses e quinze dias, nem preciso ir longe. Quero apenas olhar a minha vida com olhos de ver e percebê-la dádiva, presente e milagre.
Aí, então, volto para os meus.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A minha primeira vez


Tudo o que vivemos pela primeira vez é, de algum modo, especial. Pelo bem ou pelo mal, a primeira vez nos marca. As relações que vamos estabelecer, depois, podem estar completamente modificadas ou sofrer interferências das lembranças que ficaram do primeiro momento.
Meu pai nos contava as emoções da sua primeira alpercata, que ele chamava précata. Dizia que tinha experimentado algo para proteger os pés somente quando já estava com dezessete anos. Nós ríamos muito quando ele falava da primeira noite com elas, pois, não tendo coragem de tirá-las dos pés, tal era o encantamento, dormira calçado.
Há algumas primeiras vezes contadas com um certo glamour, com poesia.
A que passo a contar agora, talvez até tenha tido um certo charme, diferente, porém, de tudo o que o leitor possa imaginar.
Minha irmã mais velha, que foi nosso arrimo durante muito tempo, trabalhou, como empregada doméstica, em algumas casas de família.
Essa expressão casa de família é esquisita, na medida em que é tão comum haver casas cujos habitantes podem ser chamados de qualquer outro substantivo coletivo, menos família, como, por exemplo, a primeira casa na qual ela trabalhou.
Para termos uma idéia, a dona da casa chegou até a lhe dar comida no mesmo vasilhame no qual serviam a comida do cachorro.
Bem, mas o caso não é esse. Numa outra casa (e essa fazia podia se chamada assim), minha era tratada como gente que era. Freqüentemente, ganhava roupas usadas que, para nós, as usuárias em potencial, nos pareciam novíssimas e lindas.
Quando aconteceu, eu já estava com seis anos de idade.
Numa das trocas costumeiras de escovas de dente da família, minha irmã guardou as descartadas e trouxe as para casa.
Nem preciso dizer o que significou para mim, escovar os dentes pela primeira vez, aos seis anos de idade.
Padeci, de dentista em dentista, ao longo da vida, para consertar os estragos causados pelo tardio desse encontro.
Poderia, porém, ter sido pior, sem as benditas escovas.
Fico feliz, hoje, ao ver meus filhos com sorrisos saudáveis; principalmente, com o sorriso do Lucas, muito parecido com o meu, quando ainda tinha grandes e lindos dentões, bem branquinhos, sem os buracos escuros das privações.


quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Chinelos e mágoas


Outro dia, conversávamos sobre as artes que as crianças fazem. No grupo de pais já escolados e de outros em potencial, alguns diziam que criança adora fazer o que é proibido. Será que isso os diferencia dos adultos? Penso que não. A diferença é que os pequeninos fazem por desconhecimento de regras e os adultos como transgressão.
A conversa ia boa, gostosa, até que alguém comentou o gosto dos anjinhos em pisar, descalços, na terra quente.
Aquela fala me deu uma tristeza enorme. Melancólica, disse que só há prazer quanto pisam por opção.
Sei do que estou falando. Durante algum tempo, encarei essa de terra quente.
Havia um único par de chinelos para mim e para a minha irmã. Por coincidência, nós estudávamos em horários alternados. Eu ia pela manhã. Nos encontrávamos no meio do caminho, ela descalça e eu com as sandálias. Trocávamos. Ela seguia para a escola calçada e eu voltava com os pés desprotegidos.
Eu morria de vergonha de ir descalça. Além da vergonha, havia o sol das duas horas da tarde deixando a terra em brasa no verão do interior de São Paulo. Os pés reclamavam. Acho que os dela também. Mas não falávamos sobre o assunto.
Era um período duro. Se as tiras quebravam, nós as consertávamos com grampo de cabelo. Não havia outra saída.
Lembro-me de um dia horroroso. Brigamos. Por qualquer desses motivos que fazem os irmãos brigarem feito gato e cachorro, se prometerem ódios eternos e, logo depois, esquecidos, voltarem a ser como antes.
No nosso caso foi diferente. 
Não pude superar a mágoa imediatamente. Superei- a pouco tempo depois, mas não no mesmo dia.
Chegou a hora da troca e eu, má, segui calçada para casa. Acho que mesmo que eu doasse todas as sandálias do mundo aos que andam descalços, nem assim, esqueceria aquele dia.
Minha irmã era forte. Ainda é. Não foram o pé no chão nem todo o sofrimento que veio depois capazes de derrubá-la. Mas a mim, aquele dia sempre soou como um dia dolorido.
A mágoa é horrorosa. Nos enevoa o olhar. O coração não enxerga mais, não distingue o que é bobagem daquilo que é imperdoável mesmo.
Tenho tentado seguir duas normas, na minha vida: só fazer aquilo que eu posso contar aos outros e só me preocupar e sofrer com um fato se eu me perguntar se depois de um ano passado ele ainda terá importância e a resposta for positiva.
O episódio do chinelo me envergonha. Conto-o porque já sou capaz de me perdoar hoje.  Mas ele não deixa de ser triste. Muito triste.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Mãe di-vi-di-da


O pesquisador jamaicano, naturalizado canadense, Stuart Hall, defende que somos seres descentrados, cujas identidades, em função da modernidade, encontram-se deslocadas, fragmentadas e que, muitas vezes, são contraditórias entre si. Se já somos duo-hifenados, sujeitos culturais híbridos, como também nos conta Homi Bhabha, atravessados por múltiplos lugares sociais e papéis, na função materna, esse deslocamento se arraiga ainda mais; a maternidade o potencializa ao máximo.
A maternidade nos torna seres divididos. Não seremos jamais um ser uno, após termos gerado filhos.
Fui tendo clareza dessa divisão na medida em que fui gerando os meus filhos. Com o Thiago, me vi partida em duas. Com a Larissa, havia três partes de mim circulando pela vida, sempre buscando se encontrar. O Lucas, definitivamente, me fez experienciar a existência dividida em quatro partes.
Quando pequenos, dormindo no quarto ao lado, sempre ao nosso lado, a ilusão de que sentir-me despedaçada era apenas uma sensação sobrevive bravamente. Mas, na medida em que eles vão para o mundo, o sentimento de incompletude nos toma por inteiro.
Aprendi que ser uma mãe boa é deixar ir, é criar para o mundo, é possibilitar voos altos e distantes. Acreditei nessa “roubada” e preparei os meus para alçarem grandes voos.  Muitas vezes, me arrependi de ter sido uma mãe tão boa aluna e me perguntei se não seria melhor tê-los, todos, amarrados ao pé da mesa, protegidos.
Isso se tornou mais claro para mim, outro dia, quando me vi respondendo a uma pesquisa sobre o que é paz da seguinte forma.
“Paz para mim, a sensação de paz plena é a que eu vivencio, já há algum tempo, especialmente à noite, mais nos finais de semana, quando meus filhos vão a festas, a aniversários, a shows, enfim, vão encontrar a galera, como eles falavam até bem recentemente.
Já de madrugada, naquele sono de vigília, ouço um carro que para em frente de casa e o portão se abre e um deles entra: é o caçula; depois, um carro que estaciona, ouço a porta se abrindo de um jeito único e eu sei que é o mais velho voltando; por fim, outro carro estaciona fazendo o barulho conhecido das manobras para caber na sua vaga; outra vez, o som da chave na fechadura, uma porta que se fecha e a luz da varanda é apagada: minha filha que chega. 
São minhas partes, de volta. Meus filhos que sobreviveram outra noite na “night”.”
Nessa fase em que vivo agora, a qual muitos nomeiam de “ninho vazio”, o mais velho se casou, mas ainda mora na mesma cidade, bem perto e eu o vejo, ainda, voltar, mesmo que provisoriamente. O caçula, na faculdade e iniciando no mercado de trabalho, está pouco tempo em casa, na maior parte no quarto, com os aparatos tecnológicos que o conectam ao mundo – e o desconectam de mim.
E a do meio, está fora do país, fazendo um intercâmbio que eu apoiei, incentivei e possibilitei. E há arrependimentos para os três verbos, de sobra.
 Então, sinto-me, muito mais fortemente, di-vi-di-da.
O fato de ela estar mais distante, em outro país, me torna uma mãe frágil, insegura, medrosa, pois sei que, se ela precisar desta “supermãe salvadora de todos os perigos do mundo” - porque é assim que nós, mães, nos sentimos, a despeito e termos provas incontestes, todos os dias, da nossa fraqueza e da nossa falibilidade - eu sei que não poderei ir correndo até ela.
Mas, como nada dura para sempre, minha loirinha está de volta. Daqui a exatos sete dias, eu a abraçarei no desembarque do aeroporto Jorge Teixeira e vivenciarei, mesmo que por pouco tempo, a plenitude da minha inteireza, com meus três filhos respirando, como eu, mesmo ar de Rondônia, de Porto Velho.
Recarregarei as baterias para, logo, logo, me ver cortada em pedaços, outra vez.
Outras vezes.
E a próxima vez já se anuncia: é que serei avó, serei “mãe duas vezes”; então, já preparo o corpo e a alma para novos cortes, para novas divisões. E me multiplico, como multiplica, também, meu amor por estes que serão, no futuro, as testemunhas da minha passagem pelo mundo. Neles, nos quais sei que permanecerei viva, sempre.
Assim, espero a Letícia e.... quem mais chegar!

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Mordendo a língua!


     Contei essa história a alunos meus e fiquei com vontade de registrá-la na escrita.
     Aconteceu comigo e me marcou, como nos marcam certas histórias e vivências da infância, às vezes, sem nem mesmo sabermos por quê.
     Minha família morou em casas tão precárias que nem mereciam o nome de casa. Eram alugadas ou cedidas por amigos ou por patrões do meu pai.
     Não me lembro de todas. Minha mãe nos contava que houve algumas que nem janelas tinham.
     Lembro-me de uma em Lins, na rua Rio Grande do Norte.
  Era, na verdade, um grande galpão que foi dividido em paredes-meias para se transformarem em moradias.
     Minha mãe, nos períodos chuvosos, quando havia tempestades carregadas de relâmpagos, trovões e chuvas muito fortes, acompanhadas de ventania, naquela casa, bastava caírem as primeiras gotas de chuva, nos punha a todos embaixo da mesa.
     Penso que, para ela, aquele local era o mais seguro da casa. Talvez temesse que o teto caísse sobre as nossas cabeças.
     Mas esse não era o seu único gesto esquisito. Sempre que nos punha embaixo da mesa, ela nos mandava mordermos a ponta da língua. Informava-nos que, quando um raio cai e atinge uma pessoa, ela morre sufocada porque a língua enrola e impede a respiração.
     Então, toda vez que ouvíamos um trovão, mordíamos a língua.
     Claro que o seu saber cotidiano deixava escapar o fato de que, quando o trovão retumbava no ar era que o raio já tinha caído antes disso.
     Pois bem. Passados tanto tempo, ainda mordo minha língua.
     Basta começar a chuviscar, basta ouvir um arremedo de trovão ao longe e a minha língua já está devidamente presa por entre os dentes.
     Sei que não é bem assim que funciona.
     Sei também que moro em uma casa que é, de fato, uma casa.
     Sei que estou protegida, segura.
    Mas sei também que este saber ancestral, internalizado ao longo da infância, é muito maior e mais poderoso que qualquer outro saber que a vida tenha me ensinado.
    Por isso, mordo a língua.

Cybercondríacos

     Já vai ficando pra trás o tempo em que convivíamos com pessoas fissuradas nas doenças: seus sintomas, seus riscos, sua possibilidade de cura, os avanços da medicina etc. e que tinham como recursos para saciar sua sede, apenas as bulas, os farmacêuticos, um médico mais próximo, uma enfermeira com a qual tivesse feito amizade na última internação e as revistas especializadas − os chamados hipocondríacos.
     Todo hipocondríaco que se preze, é capaz de sentir os sintomas de uma dada doença, só de ouvir os relatos sobre a mesma. Também é capaz de administrar remédios com propriedade. Se você perguntar a ele se conhece um remédio para tal doença, ele lhe dirá o nome de dez, pelo menos, com informações completas sobre o preço, as reações adversas, a composição e o modo de ingestão, dentre outros.
     Hoje, com o desenvolvimento tecnológico que possibilitou esta rede chamada Internet, vimos surgir uma nova tribo: os cybercondríacos. São exatamente iguais aos hipocondríacos, com uma única distinção: não precisam mais ficar horas em farmácias, conversando com balconistas e farmacêuticos; suas informações são cooptadas na Internet, com muito mais fidelidade e autenticidade.
     Eles são, atualmente, o terror dos médicos. Especialmente daqueles que se sentiam os donos do saber, com superpoderes sobre a vida e a morte de seus pacientes.
     Devo confessar que eu fazia parte do grupo dos hipocondríacos desde sempre.
     Mas só descobri que havia me transformado numa cybercondríaca alertada por uma amiga que é professora do curso de Medicina e que me mostrou uma reportagem na revista Época − cujo título por si só já nos denuncia: Doutor Google − sobre esta nova maneira de ter mania de doença.
     Um cybercondríaco vai ao médico apenas para confirmar o que ele já sabe. Para ter certeza de que está, de fato, tomando a melhor medicação para o caso, e nas doses apropriadas.
     Vivi duas cenas que mostram como os médicos têm lidado com a questão.
     Desconfiada de que uma certa vermelhidão na perna fosse sintoma de uma erisipela, fui buscar na rede todas as informações disponíveis sobre a doença.
     Pra ser fiel à minha hipocondria, já fui me medicando logo.
     Quando cheguei à consulta e disse à dermatologista que achava que estava com erisipela porque os sintomas...
     As reticências acima servem para indicar o que, de fato, aconteceu. Ela me interrompeu, dizendo que não precisava que paciente seu viesse ao consultório lhe explicar o que era erisipela. Surpresa com a insegurança da médica, eu lhe disse que não queria ensinar nada não, que aquela era apenas uma introdução para a minha fala.
     Claro que a reação da médica mostrou mais dela do que ela própria poderia supor.
     Decidi, então, consultar uma outra dermatologista.
     Esta, ao ouvir o meu diagnóstico, educada e gentil, me perguntou o que é que eu sabia sobre a erisipela. Ao ouvir meu relato sobre a doença, mostrando-se satisfeita, disse que eu, então, sabia da seriedade da doença, examinou o local, reviu dados de consultas anteriores minhas e passou a me orientar sobre o que fazer, a partir das informações que eu dei sobre o que já tinha ingerido de medicação.
     O interessante é observar as duas reações, opostas.
     E achar graça de uma classe que se vê obrigada a repensar o seu papel de detentor de um saber que agora, graças à Internet, passa a ser acessado por milhares de pessoas.
     Claro que nunca teremos o saber teórico, técnico e prático dos médicos e isso é bom. Mas poder ter acesso a informações especializadas que nos confortem, que nos esclareçam e que até nos alertem para um possível erro de diagnóstico é ótimo.
     Santa Internet!  

Palavras curadoras

     A vida se refaz. Deus, pai de extrema bondade, ou, se preferirmos, a entidade que nos governa, a luz, nossos tantos deuses ou como quer que os nomeemos, nos possibilitam recomeços, sempre.
     O problema é que, em momentos de caos, não dá pra acreditar nessa premissa. Não é possível nem mesmo imaginar que haverá uma única saída para nossos dramas, medos e dores.
     É como se estivéssemos no olho de um furacão, sendo levados, sem controle e sem domínio das nossas ações, das nossas reações e dos sentimentos, quase sempre conflituosos, contraditórios que nos comandam.
     Vivi dias de caos, Quem é que não os viveu.
     Lembro-me de uma manhã em que eu subia, a pé, a avenida Sete de Setembro, chorando de soluçar, com olhos tão enevoados que ficava difícil enxergar a calçada, a guia, a sarjeta e os transeuntes. Apenas lágrimas, passos trôpegos e um buraco na alma que me garantia a impossibilidade de prosseguir.
     Abandono, perda, amor em vão, uma sozinhez de dar dó.
     Era a hora de um milagre. Um daqueles nos quais acredito piamente, que acontecem todos os dias, mas que não os vemos, pois perdemos nossos olhos de ver essas dádivas.
     E aconteceu.
     Uma mulher que vinha na direção oposta, de repente, pára sua caminhada, me pega pelo braço, me segura, ao mesmo tempo, com delicadeza e determinação.
     Eu a vi, com certeza. Não sou capaz de descrevê-la. Depois de tantos anos, sua imagem se perdeu. Mas o seu gesto foi fundamental naquele momento.
     Ela me olhou nos olhos e me disse: “Minha filha, tenha fé, viu, tenha fé. Deus é um pai de extrema bondade. Vai passar. Vai passar!”.
     E se foi.
     O fato é que aquelas palavras foram ditas no momento certo e me calaram um pouco as dores e as mágoas.
     Os passos seguintes já foram mais leves.
     Sobrevivi à tormenta. Vieram outras. Tantas outras. Elas sempre vêm. Sobrevivi a todas. E de todas saí melhor.
      Ao longo da vida, sempre que encontrei uma aluna, uma amiga, uma irmã, atormentadas, com problemas, querendo abandonar um curso, o casamento, a vida, eu me lembrei dessa mulher e repeti suas poucas palavras, tentando causar um efeito idêntico ao que ela causou em mim.
      Palavras curadoras.
     E digo: “Vai passar, minha querida, vai passar, você vai ver, a cada dia você se sentirá melhor e melhor. Deus é um pai de extrema bondade e permite que a vida se refaça!”.
     Lembro-me desse episódio hoje e não é à toa essa lembrança. Estou saindo de mais uma tormenta. Como nas outras, também achei que não conseguiria, que não daria conta. E mais uma vez, me apoiei nessa desconhecida que me fez um bem enorme, sem saber que o fazia.
     Na verdade, acho que ela me disse muitas vezes aquela frase e desta vez, me disse de novo.
     E eu estou aqui, recomeçando, como fênix, renascendo das cinzas.
     Estranha mulher. Abençoada mulher. Benditas foram as suas palavras.
     Que a sua vida esteja sendo leve, firme, repleta de amorosidade como as palavras que você me disse naquela manhã tão distante, na subidinha da avenida sete de setembro. 
     Palavras abençoadas.
     De uma desconhecida.

Olhos de ver


É uma manhã ensolarada de janeiro, numa cidadezinha do interior do estado de São Paulo.

O grupo faz os últimos preparativos para a jornada do dia.

__ Os lanches estão prontos!

__ E a garrafa de água?

__ Eu já peguei o repelente.

__ Por favor, lembrem-se dos chapéus. E passem já o protetor solar!

Está última, é claro, é fala de mãe.

O carro, já marcado pelas estradas do tempo, parece ceder frente ao peso que lhe impõem no bagageiro.

Quando todos se instalam nos seus devidos assentos, ele solta um gemido.

No banco do motorista, um jovem de descendência japonesa, amigo de infância.

A cidadezinha de Inúbia Paulista havia recebido migrantes japoneses há muitos, muitos anos. Os que lá chegaram crianças ainda, estão hoje na casa dos oitenta, noventa anos.

O Kimi – este é o nome do motorista – perdera o pai migrante, anos antes. A mãe, velhinha, ainda vive, com os filhos, na terra que a acolheu.

No carro, ao lado do motorista, o Pedro. O guia da trupe.

É preciso dizer que ele é o único que conhece o caminho. Estão todos à mercê do seu saber e do seu senso de direção.

No banco de trás, mais pessoas do que os órgãos responsáveis pelo transito autorizariam. Superlotação.

Não é irresponsabilidade, é hábito.

No interior, pouco tráfego, estradazinhas tranquilas não indicam perigo algum.

No caminho, Pedro é o chefe, o guia com poder supremo.

__ Quando chegar numa árvore enorme, à direita, na encruzilhada, vire à esquerda.

__ Está demorando! Parece longe! Mais longe do que eu imaginava.

__ Tem árvore mesmo?

__ Fiquem tranqüilos. O “papai” aqui sabe o caminho.

__ Olha lá a árvore!!

__ Então, agora vamos passar pelo sítio do Seu Mané. Daqui uns dez, quinze minutos.

Lá vamos ter que parar. Alguém desce, abre a cancela para seguirmos em frente. Depois precisa fechar.

Seu Mané sabe que esse é o melhor caminho para a ida e não se importa. Podemos atravessar o sítio dele.

Curvas, ladeiras, pinguelas, riachos.

A poeirazinha vermelha que se levanta quando o carro passa ou quando cruzam com cavalos e com cavaleiros toma conta da estrada e atrapalha a visão. O jeito é diminuir ainda mais a já debilitada velocidade e aguardar até que o caminho clareie.

Sons de mata, passarinhos, cores e sabores.

Quem mora num grande centro não resiste diante da visão da natureza.

A maioria deles.

Pedem ao Kimi que pare o carro à beira da estrada, pulam a cerca de arame farpado e sobem na goiabeira carregada, que se oferece como dádiva, presente e milagre.

Uma linda manhã de verão.

Com palmeiras e com sabiás.

Mas se pararem todas as vezes que sucumbirem aos encantos do cenário rural, o destino final ficará comprometido.

Por isso, resistem a uma touceira de delicadas flores ali, a uma rama de abóboras que escapam para fora da cerca acolá, a um beija flor mais adiante e seguem.

Finalmente, o destino: o rio aparece, com suas pequenas quedas, com o movimento natural das águas que, sabiamente, contornam os obstáculos formados por pedras e troncos e serpenteia, seguindo seu curso.

Pescaria!!!!

Muito bom o silêncio da espera. As varas de bambu em punho, devidamente preparadas com anzóis e minhocas e lançadas às águas.

São todos pescadores, agora, e ocupam o lugar que, para cada um, é o melhor ponto de pesca.

__ Ai, que nojo! Eu não ponho a mão nesse bicho! Põe no anzol pra mim, tio?

__ Como é que você quer ser pescador, se tem nojo de minhoca?

Risadas.

As piadas de pescador logo começam.

São inevitáveis as lembranças de outras pescarias, as histórias de peixes enormes que não têm, sequer, uma fotografia que comprove a façanha da pesca e que lhes dê legitimidade.

Miguel é o primeiro. Inaugura a pescaria, dando gritinhos e puxando com força a vara que se estica toda, atendendo aos apelos da linha.

__ Aí, tia! Eu sou o maioral!

  Pelo menos dessa vez, não vão ter que comprar peixes na volta para casa para fazer jus ao gelo que espera na caixa de isopor, e para escaparem das gozações dos que ficaram.

O Kimi reclama da gritaria.

__ Vocês me fizeram perder meu primeiro peixe. Estava quase mordendo a isca!, garante ele.

Novamente risadas.

Um fogareiro é improvisado.

Os lanches permanecem nas sacolas, meio esquecidos.

Quem resiste àqueles peixes, fresquinhos, tratados ali mesmo, nas águas do rio, salgados e recheados com uma farinha de mandioca amarelinha e crocante, misturada a tomates picados, cebola e cheiro verde?

Ninguém.

Os peixes são o almoço.

Fim de tarde. Sol se pondo.

Dias felizes passam rápido.

Mas sobrevivem.

Na memória, são eternos.

Na volta, Pedro assume, novamente, sua função de guia.

Agora, sugere um atalho, um outro caminho de volta, mais rápido e mais seguro, por causa da escuridão da noite que se adianta.

__ Esse não passa pelo sítio do Seu Mané. Assim, ninguém terá que descer para abrir e fechar cancela.

As pernas dos pescadores de primeira viagem - possíveis escolhidos para a tarefa – agradecem.

Rostos cansados, avermelhados, prenhes de vida. 

Em casa, contam do dia.

Os peixes, naturalmente, aumentam, em tamanho e em quantidade.

O grupo se desfaz. Kimi diz que a mãe o espera para o jantar.

Tia Marina e o tio Tito conversam na varanda.

Pedro precisa ir pra casa com seu filho Miguel.

A mãe, Leninha, ocupada com as tarefas caseiras, apesar de amar pescarias, desta vez, não foi.

Mas deve estar preocupada e ansiosa, afinal, já é noite.

__ Já quer ir pra casa, Pedro?

__ Já! Vem comigo, Miguel?!

Na manhã seguinte, cedinho, Pedro chega fazendo barulho, acordando todo mundo.

Mas não se demora. Veio só para fazer uma farrinha com os parentes de férias.

Todas as manhãs, nos últimos dias, ele leva um amigo e vizinho para dar uma volta pela cidade. Ele precisa de ar fresco, sair um pouco de casa. Espairecer.

O João, este sue vizinho, passou por momentos difíceis. A A diabetes o levou a amputar uma das pernas, na altura do joelho.

Vai pôr uma prótese; mas, nesses primeiros dias pós cirurgia, ainda em cicatrização, precisa de uma cadeira de rodas, para ter um mínimo de mobilidade.

Pedro é seu guia. Manobra a cadeira de rodas com habilidade.

João vai dizendo para onde seguir, para onde quer ir.

__ Pedro, vira à esquerda aqui. Segue em frente.

__ Cuidado! Tem uma descida!

__ Espera. Vai passar um carro.

Quem os vê pelas ruas de Inúbia, vê, sem dúvidas, uma bela imagem.

Que nos prova a incrível capacidade de superação dos seres humanos, mesmo nas situações mais adversas.

Antoine de Saint-Exupéry estava certo. O essencial é invisível aos olhos.

Pedro é as pernas do seu amigo Miguel.

Miguel é os olhos de Pedro.

Pedro está cego há alguns anos. Também vitima da terrível diabetes.

Mas vê.

Vê como muitos daqueles que enxergam não conseguem ver - quem eram, verdadeiramente, os cegos, naquele carro que seguiu para a pescaria?  

Pedro vê com olhos de ver.

Vê com os olhos do coração.