quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Al... o quê?

 As pessoas mais próximas a mim sabem do meu medo do Alzheimer. É mais que medo. É pavor. Não por acaso estou lendo um livro relacionado ao tema: Os prós e os contras de nunca esquecer (Val Emmich). Inclusive, já escrevi um texto que reflete a respeito dessa minha condição, chamado "Sobre lembrar... sobre esquecer..." (publicado aqui no blog), contando o quanto fiquei impactada quando assisti "Para sempre Alice", um filme sobre uma professora de Linguística que, aos 45 anos, se descobre com essa doença horrorosa.

Por coincidência, minha sogra se chama Alice. E está nos esquecendo a todos. É doloroso vê-la ausente de nós.
Por conta disso, os meus esquecimentos, típicos de uma mulher de 59 anos, a mim sempre me soam como algo além de uma simples desatenção. E eu ligo o sinal de alerta.
Seria muito bom esquecer minhas dores, meus rancores, meus fracassos, meus desamores, minhas mágoas e minhas perdas ao longo da vida. Seria um bálsamo, um descanso para meu coração já tão calejado. O problema é que o melhor de mim também iria embora: meus amores, meus encantamentos pela vida, minhas grandes vitórias, e também as singelas conquistas tão valiosas quanto. Não saber mais o quanto sou amada, não lembrar mais do nascimento dos meus filhos, da minha neta, das alegrias das conquistas deles, das nossas viagens ... Inimaginável!
Semanas atrás fomos a Cacoal. Passamos dezessete dias com Letícia, Leila e Thiago: minha neta, minha nora e meu filho.
Dias muito felizes.
Lá, vivi mais um dos meus "esquecimentos": andando dentro de uma grande loja, vi um estande de óculos de sol. Perguntei ao vendedor se sempre venderam óculos de sol e ele me disse que não, que só recentemente. Me contou que as demais lojas da rede também estão com esses estandes. Experimentei alguns, mas optei por não comprar nenhum, apesar de estar precisando. O meu último, lindo de viver, ganhei de uma grande amiga, mas, estupidamente, o perdi no mar de Boraceia. Não agora: sou chata, preciso experimentar muitos. E sou indecisa.
Continuamos pela loja e, alguns minutos depois, eu exclamei: Veja como estou! Saí sem meus óculos! E minha norinha: Não saiu não, dona Neusa! Olha aí, pendurado na sua blusa. A senhora tirou para experimentar os óculos de sol!!!
Chocada! Com certeza, Alzheimer!
Na volta a Porto Velho, decidi que não daria mais para protelar. E agendei uma consulta com uma neurologista. A médica, maravilhosa! Acessível, humana, claramente disposta a ouvir -- raridade nos dias de hoje em todas as pessoas e, ainda mais, na classe médica -- ficou atenta  enquanto eu elencava uma série de episódios de esquecimentos:
1. Eu vou até a minha área de serviço buscar uma barra de sabão e lá vejo panos de chão sujos e os coloco pra bater no tanquinho. Vejo que a máquina de lavar já parou e retiro as roupas e as estendo no varal,  limpo o cocô do cachorro, lavo o chão ... E volto pra dentro sem a barra de sabão.
2. Estou fazendo um exercício no Pilates, três repetições de quinze movimentos cada. Paro na primeira ou na segunda série para tomar um copo de água e, quando volto, não sei maisem qual aparelho estava.
3. Retiro a panela do fogão, mas deixo a boca ligada.
Ela me pergunta, em seguida,  sobre como é a minha vida. Resumi, brevemente, tantos anos: a minha história profissional, a criação dos filhos. Contei que agora sou aposentada. Que assumi a administração da minha casa. Que tenho uma filha morando em São Paulo,  um filho em Cacoal e um em Porto Velho; e que fico entre um lugar e outro. Que leio; que faço crochê;  que ainda participo de bancas, quando me convidam; que, no dia anterior, tinha dado uma aula para o "Terceirão" da escola Risoleta  Neves, a pedido da minha irmã, que é  professora lá.
Conto das minhas atividades, das minhas preocupações.
Ela me diz: Olhe, na loja, você nem sabia que lá vendiam óculos. Essa informação foge ao seu conhecimento prévio. É um dado novo. No Pilates, você estava concentrada no exercício?
Conto que não. No meu horário, somos um grupo de mulheres animadas e há muitas conversas. Todos os assuntos. Uma hora de pura diversão, de perfeito relaxamento.
E ela retoma: Olha o tanto de serviço que você faz quando vai à área de serviço. Eu me cansei só de ouvir. Olha a rotina que você tem!
Ainda me lembrei de lhe contar o que meu caçula repete sempre: Mãe, você é a aposentada mais ocupada que eu já conheci.
E, então, para meu espanto, ela me radiografou, como poucos.
Com uma médica dessas, ninguém precisa de horóscopo, de tarô,  de mãe Diná. Ela lê a alma da gente!
Me diz: o que vejo é uma mulher que trabalhou a vida inteira, que criou três filhos e que ainda busca cuidar de tudo e de todos. Resolver todos os problemas. Que faz uma atividade já pensando na próxima.
E continua: Para desencargo de consciência, já que você está muito preocupada, vou pedir alguns exames.
E acrescenta, mais como humana e como mulher, que como médica:
Mas relaxe, é normal! Se permita viver os seus sessenta anos! Descanse!
Fico só me prometendo: Vou tentar! Vou tentar!

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Santa tecnologia

 Sou tão grata por viver nesta época. Pelo conforto de ter filhos à distância e de poder contactá-los instantaneamente. Que dó eu tenho das mães do passado, que aguardavam uma carta durante meses. Como é bom chamar um filho pelo Whatsapp e ter sua resposta imediata. Aquieta a alma, responde dúvidas,  esclarece,  informa, garante uma noite de sono mais tranquila ...

Minha filha está longe já há seis longos anos.  Eu a sigo, claro, nas redes sociais. Vejo os stories no Instagram, um comentário no Twitter, uma postagem no Facebook e sei por onde anda, quem encontrou. E esse saber é bálsamo. Quem é mãe sabe do que estou falando.
Há efeitos colaterais nem sempre desejáveis. Costumo prestar mais atenção ao noticiário sobre a cidade de SP. E,  às  vezes, vejo que a linha vermelha está com velocidade reduzida, que há uma manifestação na avenida Paulista, que houve um assalto na rua Celso Garcia ou que uma determinada região tem alagamentos, por exemplo. 
Entro em contato e pergunto:
__ Filha, tudo bem? Onde você está?
E ela, sabendo a mãe que tem, responde:
__ O que é que houve, dona Neusa? Está acontecendo o quê aqui em SP?
E aí eu conto, né!
Já a ouvi várias vezes dizer:
__ Eu sou uma jornalista, trabalho com os sites de notícia abertos o dia inteiro,  mas a pessoa que mais me dá notícias de SP é  você, mãe!
Pois é.
Salve as redes sociais,  salve o Whatsapp. O que seria de nós, mães desesperadas, sem essas ferramentas!?

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Pandemia

 O que fazer com o medo? Pergunta a telespectadora.

E o filósofo responde: Aceitá-lo, reconhecê-lo como constitutivo da pessoa que você é e das circunstâncias em que você vive.
E continua: Mas não paralisar, fazer o melhor dentro das suas condições. Ajudar alguém ou algum grupo, ler um bom livro, assistir um bom programa de televisão. Cuidar de si e dos próximos.
A resposta aquieta o coração. Apazigua a alma. Por alguns instantes.
O meu medo, gigante, que me habita e que, há noites, não me deixa dormir um sono tranquilo, me diz que, no meu caso, nada disso é suficiente.
Acho que sei o porquê. O filósofo não sabe.
Meu medo é medo de mãe! De mãe que tem filho no mundo, vivendo, trabalhando, em contato com outros. Meu medo é monstro de filme de terror. Dos piores. É horrível. Me assola, me toma, me entorpecente. Meu Deus! Que medo!

A melhor declaração de amor


Letícia ama Nutella. Foi o tio Paulo que a apresentou à Nutella. Se deixar, come um pote inteiro, às colheradas.
Há alguns dias, a mãe a levou para cortar a franja. Fiquei preocupada,  temerosa que estou o tempo todo. Mas a mãe me aquietou. Disse que estavam só elas e a cabeleireira no salão. Com máscaras,  local arejado e tudo higienizado com álcool em gel.
Dias depois, combinamos que viria nos ver. Recebi esse áudio:
__ Oi, vovó! Eu vou depois do almoço. Olha, se você ficou preocupada porque eu fui no salão,  eu vou de protetor, eu vou de máscara, de luva,  eu me "ensacoto" toda, mas, por favor, deixa eu ir. Sem ir na sua casa é pior do que ficar uma semana sem comer Nutella. Muito pior!
É isso aí! A Nutella que lute!!

O abraço nos tempos do Covid


Há teorias exaltando o poder do abraço. Há grupos que se reúnem para distribuir e receber abraços. Há pessoas pelas ruas ofertando abraços gratuitos. Ou melhor: havia, antes da pandemia. Há cursos sobre o abraço. Lembro-me de um, na Universidade Federal de Rondônia, oferecido por alunos de uma turma de Pedagogia. Eles falavam sobre a importância do abraço, classificavam e nomeavam os vários tipos de abraço. E,  claro, encerravam o breve encontro com todos se abraçando. Lembro- me de um deles: o abraço expectorante - é quando os "abraçantes" batem com força um nas costas do outro, praticamente esmurrando-se mutuamente. De outro: os corpos formam um A, porque as cinturas se distanciam, evidenciando pouca intimidade ou significando, apenas, civilidade cordial.
Em um curto período em que fiz Ioga, aprendi o delicioso abraço em X, em que alternamos os braços por baixo das axilas e por cima dos ombros da pessoa abraçada, fazendo, assim, com que os corações toquem os corpos um do outro. Delícia de abraço, ainda mais quando termina com beijos nas bochechas. Lembro-me da música que cantávamos na "sessão do abraço": "Todo aquele que eu toco, bendito será. Todo aquele que eu toco, bendito será. Minhas mãos estão cheias das graças de Deus".
Quando eu viajava para passar longos períodos longe dos meus amados, eu pedia ao Tito: Abrace os meus filhos! Não pedia que os alimentasse, que os protegesse. Pedia que lhes desse abraços. Abraço é vida!
Li no livro "Canja de galinha para a alma: Histórias para aquecer o coração": Abraçar é sinal de saúde. Ajuda o sistema imunológico,  auxilia na melhora do quadro de depressão, reduz o estresse e ajuda a dormir.  É completamente natural. Além disso, sua doçura é orgânica,  contém zero ingredientes artificiais,  não polui o meio ambiente e, portanto, é ecologicamente responsável, além de 100% integral. Um abraço é o presente ideal. Perfeito para qualquer ocasião, divertido de dar e receber, demonstra consideração com o outro, já vem embalado e é, logicamente, totalmente retornável. Abraçar é praticamente perfeito. A bateria não acaba nem oxida, não engorda, não exige pagar mensalidade,  é antifurto e sem taxas inclusas (...)"
O abraço é tudo isso. Mas, e agora? O que fazer com a nossa inanição de abraços, em tempos de Covid?
Descobri outro dia que somos capazes de reinventar o abraço. Graças! Descobri que eu continuo abraçando os meus, de outros jeitos.
Eu agora abraço meu filho mais velho "de barriga": me abaixo e envolvo sua circunferência com meus braços e dou beijinhos na sua barriga. Minha neta tem ganhado abraços de cabeça: eu a envolvo do alto e beijo seus cabelos. Também tenho abraçado meus outros filhos lateralmente, evitando o encontro dos rostos: nesse tipo de abraço, a gente acaba beijando o pescoço, já perto da nuca.
É.  Há saídas. O Covid tem espalhado dor e perdas. Tem nos tirado as esperanças em alguns momentos.  Mas sempre é possível achar um jeitinho de demonstrar nosso afeto. São abraços estranhos, é certo. Exóticos,  diriam outros. Mas nos possibilitam tocar quem amamos,  um contato tão essencial em dias tão áridos.
Até que chegue o dia em que poderemos dar afetivos abraços de urso!

Lar é onde nosso coração está

 O Felipe, amigo da Larissa, me encaminha, um texto que ele recebeu no Whatsapp:

Da minha vizinha é maior e 1,80 cada. Super gostoso, pode ter cobertura de chocolate ou não.
E completa:
Essa foi a propaganda que me fizeram do bombom com recheio regional da sua vizinha
Me passa o contato, por favor?
Sim. É verdade. Minha vizinha faz bombons deliciosos.
Pergunto: Foi a Julie que te falou?
E ele: Não. Foi a Larissa.
Passo o contato e só depois é que compreendo a profundidade da mensagem.
Escrevo pra ele:
Ohohohoh agora que caiu a ficha. Da minha  vizinha... ela considerou essa a casa dela. Ohohohoh.
E ele, delicadamente,  me diz a melhor frase da vida:
Lar é onde o nosso coração está, não é mesmo?
É mesmo. Tantos anos depois, nossa casa é o lar da Larissa.
Aí é a hora em que eu choro. Claro.  Não sou mulher de perder oportunidade de chorar.
E o dia começa leve, lindo, prenhe de afetos.
Lar é onde o nosso coração está!

A cristaleira

 Minha irmã  é dessas pessoas "que não existem". Me contou outro dia que foi mostrar um apartamento para um rapaz e uma senhorinha interessados em alugá-lo.  Em Natal. Na praia de Ponta Negra. Com vista para o morro do Careca. Um luxo!  E me disse: Até agora estou perplexa. Um filho querendo deixar a mãe velhinha num apartamento alugado para vender a casa dela. Uma casa linda em Capim Macio (bairro nobre de Natal) para dividir entre os irmãos. Ela tem uma cristaleira que, com certeza, não caberia no apartamento.

E continuou a história:
Na oportunidade que tive perguntei: A senhora quer vender sua casa? Ela encheu os olhos de lágrimas. Disse a ela: Não venda! Aqui não cabe sua cristaleira.
Que triste!
Conversamos mais um pouco sobre o envelhecer, sobre a relação entre pais e filhos.
Fiquei pensando no valor que os idosos têm (Ou melhor, não têm) no nosso país. E na cristaleira, esse móvel tão antigo e tão simbólico nas casas brasileiras.
Passados alguns dias, minha irmã me conta:
Neusa. Veja, a senhorinha sobre a qual te falei disse que falou com os filhos e não vai sair da casa.
Ah! Essa minha irmã transgressora! E empática! Sempre!
Um alento para tempos tão áridos. 

Reencontros

 Ah! Os reencontros. É a outra história que prometi. A melhor parte. O processo todo começa na intenção da pessoa em vir. A cabeça fica matutando. Mas só se efetiva na compra da passagem. Definidos dia e hora, inicio a arrumação: limpo o quarto, retiro a proteção do colchão, forro a cama com lençol e fronha limpinhos, ponho um edredon ou uma mantinha como pezeira e algumas almofadas sobre a cama.

E não adianta me alertarem: Mas é só daqui a um mês! Mas ainda faltam quarenta e cinco dias! Não tenho competência para processar argumentos tão racionais. Meu coração só sabe das chegadas.
Tudo bem. Lá no fundo, sei que terei que trocar o lençol quando o dia estiver mais próximo, tirar o pó,  atualizar a faxina.
Mas essa antecedência na arrumação é o meu modo de dizer ao universo: Olha, esse voo tem que chegar certinho. Vocês não podem cancelar, nem pensar em arremeter, nada de turbulências. Esse Uber não pode pegar engarrafamentos, não pode haver nenhuma via interditada, nada. A pessoa que vem também não pode se atrasar. Sempre aconselho a ir mais cedo pro aeroporto. Se puder dormir lá na noite anterior, melhor ainda.
Na semana da chegada, os preparativos culinários. É tempo de comprar dourado, tucupi e jambu. Açaí,  farinha de mandioca e de tapioca. Coentro, cominho, chicória e pimenta de cheiro. Cebola. Tomates e pimentões.
Se chegar à noitinha, canja. Deixo tudo cortadinho e preparo um pouco antes de ir pro aeroporto. Pra comer ainda quentinha.
Se chegar ainda a tempo para o almoço, não há dúvidas: dourado no tucupi com jambu.
Ah! Sempre vou mais cedo pro aeroporto. Como não tenho dirigido mais, já  aviso: Se não me levarem, vou de Uber.
De uns tempos pra cá,  aposentada, com mais tempo livre, quando parentes ou amigos estão vindo a Porto Velho pela primeira vez, me permito uma delicadeza: compro toalhas de banho, lavo no amaciante, levo para bordar os seus nomes. Quando se forem, levarão as toalhas como lembranças da viagem. Também já encomendei faixas de boas vindas. É um mico, eu sei. Hoje, os meus não me deixam mais fazer isso. A rua toda fica sabendo das visitas.
Depois... Depois é festa. Até o dia em que se começa a falar na viagem de volta.
Aí... Aí é a despedida. Outra vez.

Cinquenta e nove anos

 Ao longo da vida, tenho recebido incontáveis presentes. Dentre estes, os mais importantes são os impalpáveis, cujo valor é impossível definir. Vários são textos. Preciosidades. Este é um deles, meu mais recente tesouro, escrito pelo meu filho Lucas. Quando os dias são difíceis, eu o releio... e me fortaleço. 

59 anos deu tempo pra fazer tanta coisa né mãe?

Deu tempo pra mudar a história da sua vida, deu pra se tornar PhD, deu para ser avó, deu para conhecer outros países...
59 anos é mais que o dobro da minha existência.
Você se reinventou, encarou a vida com coragem, e encara até hoje.
Sou um eterno aprendiz da maneira em que você lida com a vida.
A última foi: como reagir quando erramos? você falou da teoria de Piaget como eu falo sobre bananas.
Você é alto astral, positiva, esperançosa, ama a vida, tem sede de viver ela da maneira mais intensa que te cabe, eu também amo isso!
Amo o fato de poder compartilhar minha vida com você, amo o fato de te ter como mãe, amo todas as lições que você me dá mesmo sem saber. Amo que você acredita no meu potencial muito mais que eu, por muitas vezes.
Eu só queria que você pudesse viver por mais uns 590 anos, no mínimo! mas eu sei que não vai dar...então mãe, obrigado do fundo do meu coração por tudo o que você conseguiu ser, pelo que você foi e pelo que você é!
Curta muito o seu aniversário, sorrie, gargalhe, fale alto, faça mais uma vez como sempre faz!
Feliz 59, do seu caçula de 28.
Eu amo você ❤

Criar filhos

 No voo de mais de três horas, lotado, atraso para o embarque e chamada a todos que quiserem despachar suas bagagens graciosamente, pois já se sabe que elas todas não caberão nos compartimentos.

Acho que adivinhei, pois já tinha despachado a minha no guichê.
Muitas crianças.
Nas três poltronas ao meu lado, uma jovem família: pai, mãe,  uma criança de uns três para quatro anos e um bebê de colo.
Finalmente, decolamos.
Retiro o material que havia selecionado para ler durante o voo.
O bebê chora. O bebê chora muito. Na verdade, grita.
O pai o alimenta: potes de alimentos. Devem ser gostosos. O aroma é muito bom. Num pote, uma papinha. No outro, comida mesmo. Parece bem cozida, está bem misturadinha. Mas é sólida.
Reparo que a criança é muito grande. Quase um super bebê.  E os pais são dois jovens magros.
Incomodo-me com a alimentação da criança entre um choro e outro. Entre um grito e outro. Entre eles, algumas ameaças de engasgo. Aflijo-me. E me espanto porque ele come. Entre um grito e outro, ele come.
E eu não leio.
Nas poltronas próximas, um certo constrangimento. Olhares.
Chama-me a atenção a calma dos pais. É mais que calma. Parece anestesia. Isso: estão anestesiados. Será que não ouvem o mesmo choro que nós, simples mortais? Será que Deus, na sua infinita bondade, os poupa para aguentarem firmes?
Fecho os olhos e tento me lembrar dos meus filhos, pequeninos, em viagem. Nenhuma cena parecida me vem à mente. Será que Deus também nos dá a graça do esquecimento? Ou tive a sorte de gerar seresinhos mansos, tranquilos e calmos?
Uma vontade repentina de beijar e de abraçar os três. De agradecer. De fazer um PIX para cada um!
O choro continua.
Depois, uns minutinhos de pausa.  Minutinhos mesmo. Veja as pessoas se mexendo nas poltronas. Olham-se entre si. Algumas até pegam de novo os celulares dos quais tinham desistido e guardado nas suas bolsas. Em vão.
Umas duas horas de voo e o pai se levanta. Quando volta, sei o que foi fazer: aquecer as comidinhas no microondas. Quando abre os potes, o aroma se faz mais forte e delicioso outra vez. Tenho que me conter: minha vontade é falar:
__ Olha, esse bebê está super alimentado. Ele, definitivamente, não está com fome! Deixa que eu como!
Não posso, né!?
Também, por diversas vezes, tive vontade de pedir para pegar o bebê no colo um pouquinho. Quem sabe, um colo diferente e uma voltinha no corredor.... acalmariam-no. Mas não o fiz. Fiquei temerosa de que ele me estranhasse, já que sou, de fato, uma estranha, de máscara, ainda por cima.
Estou com umas dorezinhas chatas. E estou velha. Será que a mim o choro incomodou mais que aos outros? Já vi e ouvi tantas crianças chorando em ônibus, em aviões... ao longo da minha vida! Porque é que hoje está mais difícil? É. Estou velha. E com dores. Isso muda tudo. A aeromoça - olha como estou velha! Não é mais aeromoça! É comissária! - passa e brinca com o bebê. O choro continua, mas está mais espaçado. Haja energia, garganta. Acho que nem ele aguentou. O irmãozinho tenta interagir. Descobri que o bebê se chama João. Oh! O nome do meu pai! Que bebezinho fofinho!
Daqui uns 40 minutos, o avião vai pousar.
Que Deus abençoe esses jovens pais. Minha leitura pode ficar pra depois.
Estou bem, tudo vai acabar bem. Até escrevi um texto!
Só uma dúvida me consome: faço o PIX pros meus três anjos?

A filha de João e de Umbelina

 Desconhecida, 11 anos, apareceu sozinha no meio de gente adulta, naquela tarde de sábado. Era um trabalho de iniciação artística para um grupo de bordadeiras industriais. Chegou sorridente e disse que tinha vindo participar. Cresça e apareça, seria a resposta correta, mas não sei como o assunto terminou.

Sem retaguarda e recurso, foi parar na faculdade, abrindo o vácuo para outras duas irmãs mais velhas. Deu conta do serviço. Bordadeira durante o dia, universitária à noite, teatro na madrugada. Maneira de dizer, pois, das reuniões após as aulas, saíram excursões culturais, saraus, revistas, festas juninas, natais simbólicos, cavalgadas para promover eventos, bonecos enormes para o teatro de rua e peças teatrais diversas.
Noite alta, sala no porão, o grupo se reunia para revelar o que tinha ouvido, antes do sol nascer daquele mesmo dia, no ponto dos boias frias, na esquina do cemitério. O trágico da comida que não ia e das crianças que ficavam sozinhas. A incrível diversidade dos chapéus improvisados, os trapos reunidos para proteger os corpos criando figurinos, que se ampliavam em cenários, pela força do conjunto daqueles que imploravam ser escolhidos para mais um dia de trabalho bruto. Este avesso anônimo e periférico virou denúncia iluminada em vários palcos da região.
Em pouco tempo deixou as linhas, os moldes e a máquina de bordar para orientar grupos de leitura e integrar a equipe da Biblioteca da Fundação Casa da Cultura de Lins.
Alguns anos atrás encontrei a Neusinha Xandu - carinho dos amigos pelo pai João Xandu, que vendia mandiocas no Junqueira - em Vilhena, ostentando um tailleur azul marinho e muito segura ao microfone.
Neusinha virou escritora de uma literatura muito necessária. Revela ao Brasil, sem constrangimentos, as ausências  - não imagináveis pelos amigos - de um momento difícil da sua existência. Relato aquecido pela coragem de dizer a verdade, mas insuficiente para aquecer a frieza das estatísticas que indicam 50 milhões de excluídos com a mesma história. (Texto escrito pelo professor Dr. Luiz Eduardo Ramos Borges, quando leu o meu livro Parceiros de jornada)

Conversa sobre a ceia do o Natal de 2020

 

Atendendo às recomendações, pequenos grupos, formado por pessoas que já estavam convivendo durante a pandemia.
Assim, estaremos juntos Larissa, Tito, eu e um amigo, o Odilon.
- Vamos ter rabanadas?
- Achei que ninguém fosse lembrar e eu fosse passar batido esse ano. Mas faço sim!
A Larissa faz a melhor rabanada da vida!
- Vou fazer salpicão, tá. Já sei! Você vai falar que eu exagero. Vou fazer pouquinho.
- Quero "fugir" do peru neste ano, sabe. Além disso, é muita carne pra pouca gente.
- Pensei em cordeiro, carneiro, uma carne exótica. Ou bacalhau. Que tal?
- Hummm! Não gosto de nenhuma dessas opções. Poderia ser prato único. Que tal um risoto de camarão. Ou macarrão com camarão?
- Tá. Vamos pesquisar.
- Olha, muitos restaurantes e padarias estão entregando ceias.  Inclusive personalizadas.
Aí,  envio um link com reportagem sobre as opções.
E recebo a seguinte mensagem:
"Mãe, 2020 tá ruim, mas não a ponto de você não cozinhar pra gente no Natal"
Hahahahahah  Tá certo!
Já perdemos tanto! Vou cozinhar. Com amor.

Eu sei... mas não devia

 A escritora Marina Colasanti escreveu um belo texto chamado "Eu sei, mas não devia", sobre as situações quase  sempre infelizes ou, pelo menos, incômodas nas quais nos vemos e as quais findamos por aceitá-las, por pura acomodação. Sei que já me acostumei, como todos nós, com várias delas, mas... com as despedidas é mais difícil. São tantas! Foram tantas! E serão outras mais, mas, com elas, não me acostumo.

Então, o tema é recorrente na minha escrita. Assim, entrego a vocês mais um texto sobre o nosso ir e vir pelo mundo, sobre reencontros e despedidas. Provavelmente, repetindo os já ditos nos textos anteriores:
"Se as estradas, ruas e avenidas que levam a portos, a rodoviárias e a aeroportos falassem, teríamos compêndios os mais extensos sobre dor, sobre saudade, sobre separações e lágrimas.
Mas elas também falariam de reencontros, de beijos e de abraços os mais calorosos.
Contariam de amantes eternos separados pelas circunstâncias da vida.
De pais e de filhos saudosos, machucados pelas ausências.
Brindariam as amizades que se juntam após breves ou longas jornadas pelo mundo.
Sejam alegrias ou tristezas. Sejam despedidas, reencontros ou desencontros...
Elas confirmariam nossa humanidade: a grandiosidade das nossas caminhadas, mas também a nossa insignificância diante do todo. A nossa falibilidade em controlar o tempo, o destino, a vida.
Seguir por estas estradas,  ruas e avenidas... nas idas e nas vindas... nos contam que somos fracos, que somos pobres, que somos miseráveis nas partidas. E que somos fortes, ricos, poderosos nas chegadas.
Hoje, faço o caminho da despedida.
Mas, como já nos disseram os filósofos, só há uma constante no universo: a mudança.
Então, vou aguardar, mais uma vez, a chegada. Tempo em que voltarei a ser forte, rica e poderosa. Feliz!"