terça-feira, 9 de novembro de 2021

A filha de João e de Umbelina

 Desconhecida, 11 anos, apareceu sozinha no meio de gente adulta, naquela tarde de sábado. Era um trabalho de iniciação artística para um grupo de bordadeiras industriais. Chegou sorridente e disse que tinha vindo participar. Cresça e apareça, seria a resposta correta, mas não sei como o assunto terminou.

Sem retaguarda e recurso, foi parar na faculdade, abrindo o vácuo para outras duas irmãs mais velhas. Deu conta do serviço. Bordadeira durante o dia, universitária à noite, teatro na madrugada. Maneira de dizer, pois, das reuniões após as aulas, saíram excursões culturais, saraus, revistas, festas juninas, natais simbólicos, cavalgadas para promover eventos, bonecos enormes para o teatro de rua e peças teatrais diversas.
Noite alta, sala no porão, o grupo se reunia para revelar o que tinha ouvido, antes do sol nascer daquele mesmo dia, no ponto dos boias frias, na esquina do cemitério. O trágico da comida que não ia e das crianças que ficavam sozinhas. A incrível diversidade dos chapéus improvisados, os trapos reunidos para proteger os corpos criando figurinos, que se ampliavam em cenários, pela força do conjunto daqueles que imploravam ser escolhidos para mais um dia de trabalho bruto. Este avesso anônimo e periférico virou denúncia iluminada em vários palcos da região.
Em pouco tempo deixou as linhas, os moldes e a máquina de bordar para orientar grupos de leitura e integrar a equipe da Biblioteca da Fundação Casa da Cultura de Lins.
Alguns anos atrás encontrei a Neusinha Xandu - carinho dos amigos pelo pai João Xandu, que vendia mandiocas no Junqueira - em Vilhena, ostentando um tailleur azul marinho e muito segura ao microfone.
Neusinha virou escritora de uma literatura muito necessária. Revela ao Brasil, sem constrangimentos, as ausências  - não imagináveis pelos amigos - de um momento difícil da sua existência. Relato aquecido pela coragem de dizer a verdade, mas insuficiente para aquecer a frieza das estatísticas que indicam 50 milhões de excluídos com a mesma história. (Texto escrito pelo professor Dr. Luiz Eduardo Ramos Borges, quando leu o meu livro Parceiros de jornada)

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